quarta-feira, junho 21, 2006

A Beata da Sé

Vai em transe, Maria José,
tão devota em penitência,
pelas naves da velha Sé
arrastando a existência

sem palavras, pé ante pé,
de agravada subserviência
tão pequena Maria José,
sem alma, corpo ou pertinência.

E o chão sagrado que pisa a medo
fica indiferente ao polimento.
É o chão calado que, em segredo,

guarda os pecados do pensamento
que Maria José em pobre enredo
arruma em passos de arrependimento.

terça-feira, junho 20, 2006

Um poema qualquer

és o meu choro de impaciência
és o mergulho
a corda
a forca
o alçapão sob os meus pés nervosos
e és o mundo que me observa

eu sou o ser
tu o vencer
és o suor
a noite e o prazer

és fantasia que eu visto ao deitar
melodia contorcida
e dor
a fingir

és a cítara
a guitarra
o som

és a fúria da manhã
a noite vã
o divã nocturno
o tecto falso
o chão caído
o tombo obtuso

és fêmea
a pétala que entristece
a queda outonal
a chuva miudinha
o dia descoberto à lupa
todo sujo

segunda-feira, junho 19, 2006

A Viagem

Esta cidade cheira mal
vamos embora.

-Para onde vamos?

podemos ir para o Alasca
no pico de uma estação intermédia qualquer
apanhamos um autocarro
um comboio a vapor
ou vamos a pé

-O ar está pesado

sim, o ar está húmido
o céu está escuro

-Quando é que partimos?

vamos esperar o sol bolorento de amanhã
o arrepio matinal
de acordar e não ter caminho
de calçar as meias lavadas na máquina de lavar nova
de comer um pastel de nata à pressa
e tomar o autocarro em vez do café

vamos aguardar que chegue o cansaço
numa bruma feia
a saturação da chuva
o frio da lareira que já está gasta

-Mas vamos para onde?

também já pensei nas praias primitivas
onde até os cocos são pobres
e as ondas são minúsculas
a água será quente
e não dará para beber
mas dá para tomar banho
e os peixes serão extremamente violentos
- quase tanto quanto os transeuntes da cidade

mas não me sai da cabeça o Alasca
e o seu escamudo
mas tu não gostas do Alasca

-Odeio o frio e o Alasca é longe demais

não vamos para o Alasca, pronto!
partiremos talvez sem rumo
que o desconhecido é um lugar imenso
leva meias e cuecas de reserva - podemos demorar

leva o álbum de fotografias
do teu baptismo
eu levo as do meu
leva as últimas lágrimas da família
as últimas palavras dos amigos
leva o toque das paredes da casa
o cheiro do quintal das traseiras
o ruído engasgado da campainha - podemos ficar por lá

e
quando desceres
traz o saco do lixo e as garrafas para pôr no vidrão

sexta-feira, junho 16, 2006

Santo António: as quase memórias

Não é fácil acordar e ver coisas estranhas à volta. As paredes, que não se reconhecem, os armários, que não são os nossos, a cama, quando a há, que até parece desconfortável. No entanto, desta vez acordei no chão. A desarrumação e a estranheza pouco me incomodaram. Olhei em volta. Uma mulher seminua em cima de mim e outra, um pouco mais composta, um pouco mais ao lado. Havia mais gente espalhada pela casa. Pelos sofás, pelo chão. E eu pensei "boa, o Santo António correu bem". Não sei muito bem como, de que forma calhou que corresse bem. Mas essas coisas pouco importam. O que interessa mesmo é um gajo acordar e ficar feliz com o aspecto do mundo. E o meu mundo, naquele momentozinho em que acordei, pareceu-me uma maravilha "boa, restos festim..." No entanto, o caso mudou rapidamente. Tudo se transfigurou num ápice. Por descuido lembrei-me de pensar "epá, devo estar de ressaca" e foi como se a cabeça me rebentasse cá dentro e várias catástrofes naturais e mesmo artificiais fizessem Lisboa inteira convulsionar-se lá fora. Só me apeteceu cair no chão, cair no fundo da rua, num buraco qualquer, de uma maneira que parecesse que nada daquilo existia, nada era real. Vesti-me, lavei a cara e saí. A cidade estava cinzenta e meio deserta. E parada ou quase. É curioso como, numa altura do ano em que se quer sol e aquela cor entre o dourado e castanho que atrai tantos turistas, Lisboa se apresenta cinzenta e estagnada. Ou então era da minha cabeça. Já não sei muito bem onde me acabava o mundo e me começava a cabeça e vice-versa. Para mim o planeta inteiro estava de ressaca. E cheirava a ressaca. Uma pessoa nem se apercebe mas as próprias pedras da rua transpiram sardinha, cerveja e sangria. Isto não é uma coisa simpática de se cheirar num dia de ressaca profunda em que o que vem a calhar é o alheamento, o retiro, uma salada leve, o esquecimento. Coca-Cola. Mas nada disso existe. Gente pesada, vagarosa e indecisa arrasta a ressaca pelo empedrado e abrimos as narinas e é como se nos entrassem cardumes de sardinha assada pela cabeça dentro e então descobrimos que também nós somos gente pesada, vagarosa e indecisa. Gente confusa. Gente em caos. "Restos" pensei eu outra vez. E os cães comiam as espinhas das sardinhas e côdeas de pão, coisas que tinham conseguido escapar à fúria glutona do povo festivo. Raramente se comem as espinhas, sim. "Mas as côdeas marcham bem" acrescentei, mas só para mim, no pensamento. Apeteceu-me pontapear um pombo, que também devia estar de ressaca. Claro que estava! Não havia ser vivo na região que não estivesse. Portanto, o pombo estava. Mas corri e quando corri fraquejei, cambaleei e ele, filho da puta, riu-se e arrancou. A correr. Acho que não foi bem assim, mas não tenho uma recordação muito nítida. Por falar nisso, a miúda - a miúda do princípio da história, a seminua, essa miúda - era espanhola, já me lembro. "Fixe, mais uma internacionalização" e ri-me para dentro. Desta vez acho que deitei um bocadinho de riso por fora. Chamava-se Rita. Acho eu, sei lá. Nem sei se interessa muito. Lembro-me dela dizer "ar-ren-ti-na! Soy ar-ren-ti-na!!!" e eu de dizer que "a mim soa-me tudo espanholito... olé!" e ela a ficar danada e eu a agravar a situação "tortilha..." e a rir-me e a argentina que... espera aí, agora, pensando bem, devia ter um nome mais argentino - devia chamar-se Concépcion ou Conchita ou uma coisa assim do género. Para ficar mais fácil, chamava-se Lola, pronto. Ao menos é quase tão universal como Maria. Embora com pior fama e currículo. "Lola e se a gente?..." e ela a fazer-se de desentendida e chateada e várias coisas ao mesmo tempo "la renté o quê?" e eu a ficar atrapalhado claro. Mas como tinha bebido uns copos, desinibi-me com facilidade "pá... chiquitita, let's get physical" e lembro-me que nessa altura ela se riu. Acho que foi aí que a conquistei. Riu-se assim como as pessoas raramente riem. Com surpresa, com doçura. Com encanto. Demos beijos logo ali à frente de toda a gente e depois a coisa deve ter corrido dentro do curso normal das coisas. Isto, embora a casa estivesse cheia de gente. De qualquer maneira, andávamos todos ao mesmo. E até duvido que as outras pessoas nunca tivessem visto a Lola toda nua. Por isso... Mas para quê a gente ralar-se com estas coisas? Estava tudo bêbado. Hoje ninguém se lembra de nada. Nem eu próprio sei se isto foi mesmo assim ou não. Devia ter ficado com o número de telefone dela. Para tirar dúvidas.

sexta-feira, junho 02, 2006

Era quase uma vez no Oeste

O verão parecia que nunca mais acabava. O sol queimava a pele. Parecia que até queimava a paisagem. As longas planícies, de perder de vista, todas amarelas. Búfalos a pastar, ruminando com calma e desinteresse, de cabeça baixa. Os cavalos – os que ainda eram selvagens, não o meu, que era domado e obediente, embora um pouco distraído – passeavam, como se se exibissem, vaidosos. Mas o calor não lhes permitia grandes correrias. Vi uma carroça a vir na nossa direcção. Receei que fosse o Billy the Kid ou algum malvado da mesma espécie. Depois disse baixinho, para comigo “antes o Billy do que mais uma cambada desses Sioux ou Apaches ou lá como raio se chamam os índios”. Caramba, o Wild West era mesmo selvagem. Selvagem e quente. Preparei a pistola. Não, não era pistola. Era uma espingarda. Não, também não era isso. Era um revolver. Acho que era… Acho que não percebo muito de cowboys. Quem é que eu quero enganar? Nunca poderei escrever como deve ser sobre índios e cowboys. Da minha experiência, o mais parecido com cowboiadas que eu vivi foi nos tempos em que andávamos à pedrada, lá na rua. Uma vez parti o nariz ao Migalha. Passámos a chamá-lo Migalha Vermelha.