quarta-feira, junho 23, 2010

A padaria

Todos os dias a padeira o confundia. Ele levava sempre os mesmos pães. Se não eram os mesmos, eram parecidos. E ela, talvez porque achasse graça, a cada dia lhes chamava nomes diferentes: umas vezes eram pães de água, outras eram padeirinhas, outras ainda eram pães da avó. Havia vezes que eram só “bolinhas”. Para ele aquilo era confuso, pãezitos daquele tamanho... e com tantas diferenças de nomenclatura. Às vezes as padeirinhas custavam, as quatro, por volta de um euro; outras vezes, eram 76 cêntimos. Quando se chamavam pães de á’gua, a coisa ia pelos 60 cêntimos. Sempre assim, mas alternando, umas vezes mais barato, outras vezes mais caro. Uma vez levou pão escuro, fatiado, só para ser diferente. “76 cêntimos” disse a padeira e ele estranhou. Isso costumava custar as quatro padeirinhas.
Ele ia àquela padaria porque era mais arejada. Mas não era só por isso. Para além da luminosidade e do prazer que lhe dava a caminhada, aquela padaria era como um jogo das escondidas. Em todas as outras padarias ele encontrava um defeito: as pessoas queriam saber dele. Se se mudara há muito tempo, se era de cá, se trabalhava perto, se era solteiro, se tinha filhos. Tudo isso o incomodava muito. Que lhe controlassem as horas a que chegava para pedir pães d’água ou da avó ou padeirinhas. Ou bolinhas. Que lhe estranhassem a ausência, que lhe perguntassem pelas férias, pelo Natal, pela passagem de ano, pelo Santo António. Nesta padaria, solarenga e espaçosa, ele sentia-se bem. Sentia-se misterioso. Ele era o rapaz dos óculos escuros e das calças largas, sem horas certas para vir e com os pedidos confusos. Ninguém o chateava. Ninguém perguntava. E os pedidos só eram confusos porque a padeira o confundia. Pão é pão.

quarta-feira, junho 09, 2010

Exercício matinal #1

tu és onde a minha cabeça
assenta e termina
como se fosses um ombro
para eu adormecer

em cada manhã
às escuras
a ponta do meu tacto

no fim do sono
entre a vida e o banho
a minha última almofada

terça-feira, junho 01, 2010

A nespereira

Todos os dias, ele chegava da escola, mais pequeno do que a mochila que trazia às costas, e contemplava a sua pequena nespereira. Tinha sido o pai a plantá-la, poucos anos antes. O pai dizia-lhe que aquilo ia crescer muito e depois ele poderia pendurar-se nos ramos fortes e apanhar nêsperas empoleirado como os macacos. Ele gostava dessa ideia e todos os dias, atentamente, verificava se a nespereira já tinha tamanho suficiente para que pudesse trepá-la. Mas não tinha, as nespereiras não crescem assim, puf, de um dia para o outro. E ele enervava-se. Começou a medi-la com fitas métricas. Todos os dias. Nada. Então pensou em alimentá-la. Foi perguntar ao pai o que comiam as nespereiras e o pai disse-lhe que era peixe. Mas não estava a falar a sério. Ele não sabia se era ou não a sério, acreditou. As crianças acreditam em coisas. Sem esforço: pegam e acreditam, porque o mundo é assim, aquela novidade verdadeira em frente dos olhos. Foi apanhando restos de sardinhas assadas de um restaurante ali perto. Todos os dias, ao chegar da escola mais pequeno do que a própria mochila, submergia a pequena nespereira em espinhas e cabeças da mais típica portugalidade. E tripas. O pai via e nada dizia. Sabia que a culpa era sua. Ele é que mentira ao filho. A nespereira não crescia nem comia. Ele preocupava-se com a subnutrição da sua pequena árvore. Experimentou bacalhau. A nespereira morreu passados dois dias.
Chegou da escola, uma vez mais, e a nespereira ali, estendida no chão, inerte. A seiva não lhe corria pelo tronco, pelos ramos. As pequenas folhas ficaram castanhas e encarquilhadas. As nêsperas jovens enrugaram-se e apodreceram. Ele chorou. No meio de espinhas de sardinha e restos de bacalhau. Foi ter com o pai e perguntou-lhe se as nespereiras também iam para o céu como o resto das pessoas. O pai disse-lhe que as pessoas não iam para o céu. Ele ficou chocado. Então o pai disse-lhe que as pessoas iam para o inferno, mas que a nespereira dele, que era boazinha, ela sim, iria para o céu. Mas que tinham de fazer-lhe um enterro. Aproveitaram uma caixa de um armário de casa-de-banho do Ikea, puseram-na dentro, ataram com cordel e sepultaram-na nas traseiras da casa, para ninguém ver. Foi uma cerimónia simples, mas emocionada. Na sepultura espetaram uma cruz com muitos braços. A ideia foi dele. Se fosse um homem, só precisava de dois braços. Mas uma nespereira tinha muitos ramos. Se alguém crucificasse uma nespereira gastaria um balúrdio em madeira para fazer a cruz. Também havia um ramo de flores, mas nada de oficial. Eram flores dessas amarelas da beira da estrada. O que importa aqui é o significado do gesto, não o quanto se gasta no arranjo.
Os tempos foram passando. Ele chegava da escola e já era um pouco maior do que a sua mochila. Um dia foi visitar a campa da sua nespereira e notou algo diferente: junto à cruz dos muitos ramos, despontava uma nova planta. Foi chamar o pai. Queria uma explicação. O pai era fértil em explicações. Ele já sabia que o pai dizia poucas verdades. Mas o mundo não é só verdades. O que importa é explicá-lo. Pouco importa o rigor.
O pai explicou: provavelmente, e por uma enorme coincidência, a nespereira fora enterrada num antigo cemitério de nespereiras, ainda do tempo dos índios. E, por obra do acaso, que é malandro, era possível que a nespereira se tivesse enroscado num nespereiro defunto, antiquíssimo mas ainda com certas aptidões. Estamos a falar de uma história de amor subterrânea e post-mortem. Ele gostou da explicação e assim ficaram: vinha aí uma nespereirinha, filha da outra.
Passou mais tempo e a surpresa tomou conta do pai e do filho. Porque o acaso é muito mais malandro do que as explicações absurdas, o que ali estava a crescer era, afinal, uma palmeira. O pai ficou embaraçado. O filho ficou desconfiado. E queria uma explicação. O pai começou por pensar numa explicação telenovelesca, que envolvesse um palmeiro e falta de valores morais e amores à primeira vista. Mas depois optou por simplificar e disse "oh filho, as árvores não têm raça... isto é como as saquetas de cromos do mundial... deitas a semente à terra e nunca se sabe o que vai sair... foi uma palmeira, podia ter sido um castanheiro ou um plátano ou um pinheiro...". Enquanto voltavam para dentro e o filho franzia o sobrolho com muita desconfiança e alguma insatisfação, o pai decidiu rematar "por um lado é bom... é nas palmeiras que nascem as palmas...". O filho fez pffff e abanou a cabeça.