quarta-feira, abril 20, 2011

A trovoada

Um dia, o gajo, aquele tipo das fotografias detrás do balcão, de quem falei, decidiu voltar. Ele não tinha vergonha. Não espantou que voltasse. Na altura, eu tinha decidido acalmar. Arranjei namorada. Chamava-se Maria e não era pelo nome que se distinguia. Ela era linda. Era morena, tinha mesmo ar de menina e uns olhos belíssimos que ficavam à sombra das pestanas mais longas que já vi.
Um amigo disse-me “o Raul é o tipo de gajo que tu não queres que a tua mulher conheça”. Bom, eu fiquei curioso com isso. Porquê? “Ainda por cima, a Maria…” Dessa vez não perguntei o porquê.
Eu era uma pessoa segura de mim. E não tinha problemas com isso de o Raul andar de novo na zona. Por mais lendário que fosse, ele e os seus retratos e as suas dívidas. Nos retratos, nem parecia assim tão bonito. Era um homem normal, achava eu.
Estávamos numa espécie de festa, em casa de alguém. A casa tinha vista para o rio. Chovia torrencialmente e trovejava muito. Era uma tempestade imponente. Mas estava calor, um calor muito abafado, muito húmido. Diria que estavam mais de 30 graus. Éramos uns quantos e o dia tentava a custo clarear. Mas o céu estava tão negro que era difícil perceber se amanhecia ou não. Mas deviam ser umas sete da manhã. Era de sexta para sábado, acho eu. Na altura, éramos novos. Se calhar foi durante a semana, de segunda para terça ou de terça para quarta. Não nos fazia diferença. O tempo existia, fosse dia ou fosse noite, para desfrutarmos dele. E desfrutávamos. Não nos custava muito. Na pior das hipóteses, arrependiamo-nos de qualquer coisa dois ou três dias depois, quando voltássemos a estar sóbrios. Eu estava com a Maria e havia mais pessoas. Talvez vinte, talvez menos. E chegou o Raul e um amigo nosso. E eu finalmente conhecia o Raul, em pessoa. Um tipo magro, mas elegante. Não muito alto. De cabelo escuro, curto, despenteado. Ele era todo despreocupação. Tinha uma maneira desarrumada de estar bem vestido. Por momentos, quis ser como ele e logo a seguir pensei “não, pôrra, então? Não vaciles, pá”. Mas ele tinha pinta. Barba de três ou quatro dias e camisa de mangas arregaçadas, casaco ao ombro. Vi a Maria a olhar para ele. Vi-o a olhar para a Maria. Lembro-me que senti ciúmes.
A chuva não parava e a trovoada também não. Enquanto eu olhava os relâmpagos sobre o Tejo, o Raul ajudava a Maria a escolher a próxima música numa sessão de YouDJ. Toda a gente já tinha bebido muito, incluindo eu. Alguns tinham fumado erva. Eu não. O Raul tinha feito de tudo. Até tinha trazido coca e tinha partilhado. A Maria não tocou em nada e isso deixou-me aliviado ou até contente. Não estávamos juntos há muito tempo, era coisa de duas ou três semanas. Não lhe conhecia bem os hábitos e os gostos. Sossegou-me que não se tivesse deixado seduzir pelo montinho de pó em cima da mesa de vidro. Mas, entretanto, de copo na mão, encantava um Raul absorto que lhe observava as pequenas tranças. Ficava com um ar de princesa da Disney quando as prendia assim, na parte de trás da cabeça. Ela era tão bonita.
As bebidas iam terminando e as pessoas iam-se cansando ou desesperando por mais. O dia conseguia, finalmente, clarear um pouco o negrume do céu. Mas a chuva continuava, sempre forte e intensa. E os trovões e os relâmpagos. Era Raul quem agora escolhia as músicas. O gosto dele não era grande coisa. Pouco coerente, pouco criterioso. Demasiado óbvio em certas escolhas. Quando terminou a bebida, disse “malta e se fôssemos amanhecer para a praia?”. Ele falava assim. Iríamos “amanhecer” para a praia. Não iríamos para a praia ser estúpidos e apanhar uma molha gigantesca, podres de bêbados. Ele era um poeta. Tinha trinta e tal anos e fazia poesia de balcão. Irritava-me. Amanhecer para a praia…
Mas as pessoas gostaram da sugestão. Algumas, pelo menos. Uma delas foi a Maria. “Vamos” disse ela. E pôs-se ao lado do Raul. Eu não disse nada. Houve mais umas oito pessoas que disseram que sim, ‘bora. Mas só vieram mais duas. E aí fomos nós, colina abaixo, apanhar o comboio para Carcavelos no Cais do Sodré. Tudo porque o Raul queria ir amanhecer para a praia. Obviamente, amuei. A Maria notou. Passou-me a mão pela cabeça como quem diz “oh pá, eu sei que isto te aborrece, mas está a ser tão fixe” e eu irritei-me mais um pouco. Desviei os olhos e apeteceu-me chamar-lhe puta de merda e virar as costas, ir-me embora. Mas não, disse só “oh, deixa-me”. E pensei “cadela, se eu não gostasse de ti…”
Raul dominava o mundo naquela carruagem onde só nós existíamos. Mas dominava ainda mais Maria que o absorvia com os olhos cansados mas atentos. Ele contava histórias dos tempos em que tinha estado fora. Tinha ido para Londres e para Budapeste. E eu pensei se nos pubs londrinos também haveria retratos seus atrás do balcão. Tinha estado duas semanas na Grécia, onde foi preso – por engano e, por isso, logo libertado. “Pisguei-me de lá assim que saí, eles são malucos e metem é iogurte em tudo”. Ele conhecia a Grécia como a palma da minha mão.
Chegámos a Carcavelos. A chuva abrandou um pouco mas a trovoada não. Até parecia mais forte e mais intensa. “E se fôssemos ao banho? ‘Bora lá, não sejam mariquinhas”. A Maria disse “não trouxe biquíni” e riu-se. Ele sorriu “oh, estamos em família… eu vou todo nu”. Maria olhou para mim. Eu encolhi os ombros. Era-me indiferente, por mais que me magoasse. Ela deixou-se ficar “não… deve estar fria”. Raul suspendeu o sorriso. Depois, despiu-se todo e correu para o mar. Atirou-se e, quando veio ao de cima, gritou “wu-huuuu está tão boa! Seus mariconços, andem lá!” e então caiu um raio no mar e o Raul desapareceu por uns momentos. E depois apareceu mas a boiar, inerte. A Maria correu direita à água aos gritos “Raul! Estás bem, Raul?” e eu peguei no meu casaco e voltei para a estação de comboios.

terça-feira, abril 19, 2011

Mitos e lendas do meu bairro

Se o karma existe mesmo, a próxima vida deste tipo vai ser penosa, longa e sem esperança. Todas as tascas do bairro, que não eram poucas, exibiam a fotografia do homem. O mesmo retrato atrás de todos os balcões. Cheguei a pensar que fosse alguma espécie de santo ou mártir da zona. Mas não. Ele era a lenda. E tinha um dom. Ou mais que um. Tinha vários dons. Mas falava bem, esse era o seu principal talento. E era charmoso. E era descarado. E tinha tanta franqueza na sua enorme lata que se tornava difícil resistir-lhe, dizer-lhe que não. Por isso, conquistou facilmente o direito à fotografia atrás dos balcões, ao lado dos letreiros das “bebidas expostas” que “são para consumo no estabelecimento”. Ele tinha conta em vários sítios. Não estou a falar de umas poupanças na Caixa de Crédito e de uma conta ordenado no Montepio Geral. Estou a falar de bagaços anotados, aguardentes assentes, imperiais apontadas e uísques velhos rabiscados nas sebentas de todos os cafés, bares e prostíbulos numa área de seis quarteirões. Diz o povo que, tudo somado, dava para cima de seis mil euros. Não sei se é verdade ou exagero. Sei que os retratos ainda lá estão pendurados.

quarta-feira, abril 13, 2011

Numa cama, numa casa qualquer

Levantou-se, cabelos desgrenhados, t-shirt amarrotada e suja, coçou-se, foi à cozinha e bebeu água. Pôs a cafeteira ao lume e sentiu o cheiro bom da manhã. Era Primavera, estava sol, era cedo. Começou a cheirar a café fresco, foi lavar os dentes. A barba de quatro dias pedia lâmina. Mas ele não tinha tempo. Abriu mais a janela da cozinha e sentiu uma brisa morna. O carteiro passou lá fora e deixou-lhe qualquer coisa na caixa. Fez torradas e serviu-se de café. Antes de se sentar foi à caixa do correio buscar o jornal diário e o que mais houvesse – contas, um aviso de corte de electricidade, publicidade a um supermercado, flyers de yoga, flyers de reiki, flyers de restaurantes indianos, flyers de restaurantes chineses, uma proposta da Cofidis e um envelope sem remetente. Começou pelos flyers de reiki.
Acabou as torradas mas ainda tinha café para beber. Antes de se dedicar à leitura do jornal, olhou de novo o envelope. Trazia apenas o seu nome e a sua morada e um selo de remetente francês. Ficou intrigado mas não o suficiente para não se embrenhar primeiro na leitura da página desportiva. Leu-a quase toda e foi tomar um duche.
Quando saiu do duche, ainda sem se enxugar, foi até à mesa da cozinha e pegou no envelope. Hesitou antes de abrir. A aura de mistério de um envelope sem remetente deu-lhe vontade de o manter assim, incógnito, desconhecido, misterioso, indecifrado. Abriu o envelope e tirou lá de dentro um pequeno pedaço de papel. Parecia ser um bocado de um toalhete de restaurante, rasgado à pressa. Manuscrito e nervoso, o texto dizia assim:

A única imagem que guardo nossa é de ti a foder-me por trás, numa cama, numa casa qualquer. Não era a tua. E quando te vieste, deitaste-te cansado mas a sorrir. E eu acabei em cima de ti, a foder-te. Eu não queria parar. Foi a melhor noite de sexo que tive. Não consigo deixar de querer foder-te. E, se começar, não sei se vou querer parar.”

Tinha uma pequena nódoa de vinho no canto inferior direito que manchava a palavra “querer”. Deixou o papel em cima da mesa-de-cabeceira, secou-se, vestiu-se, calçou-se. Não reconhecia a caligrafia. Não se lembrava de tal episódio. Não lhe ocorria qualquer ex-namorada ou affair que vivesse em França. Restava a possibilidade de alguma one night stand esquecida nos confins da memória. Porém, havia qualquer coisa na mensagem que sugeria sentimentos. E as one night stands não suscitam sentimentos, pensou.
Era sexta-feira. Passou o dia a embrenhar-se na intrigante história de uma carta sem remetente com uma mensagem enigmática. Questionou-se várias vezes sobre quem poderia ser essa ninfomaníaca carregadinha de desejos. O pensamento excitou-o. Excitou-o muito. Percorreu, de memória, todo o seu arquivo de mulheres. Não tinham sido assim tantas. Pelas suas contas, catorze, no total. Sem contar com putas – apenas mulheres sem cachet. Agora, mais velho, solteiro, sem namorada, por vezes sentia necessidades. E a masturbação não satisfaz tudo. Às vezes é preciso um corpo, um contorno. Um olhar, um odor, uma respiração ofegante para além da sua própria.
Teve pressa de chegar a casa e nem sentiu fome. Fechou-se na casa de banho. Excitado como estava com toda esta ideia, não demorou muito até suspirar de prazer. Imaginou a autora da carta a escrevê-la numa esplanada parisiense, ao sol, com um vestido leve, decotado, as pernas cruzadas de maneira insinuante. Lisas, bronzeadas, apetitosas. Imaginava-a de baton vermelho vivo e cabelos castanhos levemente ondulados, macios e pesados caindo-lhe pelos ombros bem desenhados, um deles descoberto revelando uma alça de soutien. Imaginava-a chamando-se Sara ou Luísa ou Inês ou Isabel escrevendo naquele canto de toalhete à pressa enquanto um namorado qualquer chamado Jean Piérre foi lavar as mãos. E ela, vendo-o levantar-se, lembrou-se dessa noite gloriosa de que ele, agora, não tinha a menor recordação. E então imaginou também essa noite com uma qualquer Sónia ou Patrícia, numa casa que não era sua, numa cama que não era sua, a ser praticamente abusado por uma mulher ciosa, quase indecente, ávida, cheia de apetite e de energia. E imaginava-se a si mesmo sorrindo entre as pernas desse corpo licencioso e moreno, rodeado por coxas sedosas, envolto no aroma da carne e dos prazeres que a carne dá.
Imaginando tudo, voltou à casa de banho e voltou a não se demorar. Continuava sem sentir fome e relia insistentemente o bilhete. “Eu não queria parar” essa frase excitava-o como nenhuma outra até então. “E eu acabei em cima de ti, a foder-te”. Terceira vez. Demorou um pouco mais. Acabou por deitar-se, cansado. Não jantou e adormeceu.
No dia seguinte levantou-se tarde. Sentiu-se dorido. Passou o dia em casa. O bilhete ocupava todos os seus pensamentos. E essa mulher que não deixou memória não lhe deu tréguas à imaginação. E essa noite esquecida não deixou em paz o seu corpo que, sempre excitado, se foi consumindo e espremendo em gestos cada vez mais maquinais. Não saiu de casa durante todo o fim-de-semana. Não chegou sequer a vestir-se, a barbear-se ou a tomar banho. Bebeu café e Coca-Cola. Comeu pizzas que mandou vir. Estava obcecado.
Segunda-feira amanheceu cruel e nublada. O cansaço e as dores no corpo tornaram o seu despertar particularmente penoso. Foi á casa de banho. Tentou mijar e doeu-lhe muito. Parecia entupido. O carteiro passou e deixou-lhe coisas. Não lavou as mãos, sequer. Saltou porta fora e revolveu a caixa de correio. Não quis saber do jornal ou dos flyers do reiki. Procurou um envelope sem remetente. E encontrou.
Sem jeito, rasgou a abertura e um pouco do papel. Desta vez era papel de carta e a letra não era apressada. A mensagem era curta. Dizia só assim:

Aposto que já bateste umas vinte à custa da outra carta, meu tarado do caralho. Deixa-te disso, palerma, estava no gozo contigo. Só queria avisar que chego quarta-feira. Dá para ficar em tua casa até ao fim-de-semana? Grande abraço, João”.

Tenho de ir a Trás-os-Montes, que ainda não conheço

Estávamos a beber uma cerveja na rua. As noites de calor não dão vontade de ir para a cama. A cerveja sabe melhor. Conversávamos.
Já não somos miúdos. Já não temos, sequer, vinte anos. Olhamos para as coisas sem esperar novidades. Há pouco no mundo para nos deslumbrar. A merda da maturidade e da consciência tiram a piada a tudo. Fumar um cigarro deixa de ser um prazer. Controlar os cigarros passa a ser uma preocupação. Deitar tarde continua a ser bom, mas pesa-nos na consciência. E no corpo, que anteontem era de borracha, à prova de noite, e que agora exige descanso. Tenho um despertador e ligo-lhe mesmo, dou-lhe importância. Odeio o sentido de responsabilidade, aborrece-me. E agora, transgredir soa sempre a pecado. E eu não sou um pecador, foda-se!, sou só um gajo normal!
Tenho trinta e um anos – trinta e um anos, pá! – e ando aqui nisto, com horários e regras e contas para pagar e prazos para cumprir e a fazer planos, trabalho há treze anos, foda-se. Tenho trinta e um anos e olho para trás, não consigo contar os dias mas era capaz de jurar que ainda a semana passada tinha vinte e dois. Os meus três anos na escola secundária tiveram mais dias do que a década de 2000, era capaz de apostar o mindinho da mão direita. Renderam-me mais as férias da Páscoa de 1989 do que a Primavera de 2006 – da qual não guardo qualquer memória, acho eu, elas parecem-me todas iguais, a mesma Primavera a repetir-se, indistinta, desde 2001, mais ou menos.
Passaram trinta e um anos desde que nasci e o que é que eu andei aqui a fazer? Sim, bebemos umas cervejas à noite. Jantámos bem, experimentámos bons vinhos. Às vezes passeámos, mergulhámos nas águas tépidas do Algarve. Há uma altura ou outra em que um gajo é extravagante e vai passear para as montanhas, encher os pulmões. Ver os pássaros e não sei quê. Javalis. Tomar banho em riachos gelados. Comer coisas rústicas e ouvir só aqueles ruídos do mato a que as pessoas urbanizadas chamam “silêncio”, mas é silêncio a pôrra é que é silêncio – o silêncio não se ouve. Os grilos a fazer barulho é silêncio, por acaso?
Tenho trinta e um anos e nunca bronzeei este corpinho em Copacabana. Nunca fiz o reveillon em Times Square. Nunca caminhei em Novosibirsk pelas margens do Ob. Não tirei a carta, não fiz filhos. Acho que nem plantei árvores e escrevo coisas mas duvido que sejam livros. Sim, andámos por aí a fazer música, a dar concertos. A ver jogos de bola e pores do sol em sítios bonitos. A falar com pessoas.
Não estou a dizer que esta vida é uma merda e que é tudo infelicidade e que está tudo por conseguir e por fazer. Eu estou a dizer que tenho trinta e um anos e que não sei como isto foi acontecer, esta treta de um gajo dar por si e pumba, olha os vintes já se foram. Não me estou a lamentar. A culpa é da conversa de ontem á noite. A culpa é do calor. A culpa é da cerveja à porta do Manel.
Tenho trinta e um anos e dezoito deles foram passados em carruagens e estações de metro. Outros vinte e cinco foi a ver séries na televisão. Dormi sete ou oito. Trabalhei pelo menos quarenta e nove. Ando a gerir mal o meu tempo. Depois parece que uma pessoa não fez nada. Eu queria ter feito interrails quando tinha vinte e um anos, mas quando me lembrei disso já tinha vinte e nove. E queria ter sido um prodígio do rock aos dezanove, mas tinha vinte e cinco quando formei a banda. Queria ter ido ao Egipto aos vinte e sete mas tive medo e não tinha dinheiro. Resta-me a parte dos livros. Para os livros podemos ser velhos, não tem problema. E dos filhos. Ainda tenho tempo para isso. Mas não me posso descuidar com as horas. Tenho trinta e um anos e nunca fui à Austrália nem à África do Sul nem à Suécia. A Paris não quero ir.

terça-feira, abril 12, 2011

Cogumelos!

Eles iam a descer a rua e discutiam muito. Dois homens e uma mulher. Ela tinha uma garrafa de plástico na mão. Uma garrafa de Coca-Cola. Mas ia cheia de vinho branco ou de qualquer coisa parecida. Estavam bêbados. Um dos homens acusava o outro de lhe ter roubado uma das sardinhas. Tinham parado num arraial e comeram sardinhas no pão. O mais pequeno acusava “era a última… e tu é que a comeste!” e o mais encorpado só dizia “cala-te, ‘tás bêbado…” e era um facto, ele estava bêbado. Estavam os dois.
Estava uma noite quente e a mulher bebia pelo gargalo. Ela tinha muito mau aspecto. Tinha uma cara estragada. As feições enfiavam-se pelo rosto adentro e sugavam-lhe os contornos originais. Os lábios eram finos e tinham feridas. Vestia pouca roupa, andrajos sem critério, um conjunto inestético de sobras. A noite estava mesmo quente. E ela disse “foda-se, parem com isso” e deu mais um gole na bebida.
Eu desci as escadas. Vim deixar o saco do lixo na rua. Eles ainda caminhavam, trôpegos e lentos. Barulhentos. Estavam à minha frente, a poucos passos de distância. Olhei-os e eles viram-me. Acalmaram-se um pouco. Julgo que tentavam focar-me, descobrir-me a silhueta, definir mentalmente as minhas formas e dimensões. “Quem são estes?” disse o mais corpulento. Entrei no prédio e fechei a porta atrás de mim.
Fui para a varanda e acendi um cigarro. Eles estavam lá em baixo. Ainda estavam a processar a informação relativa à minha presença no mundo - o momento em que o acaso me fez cruzar com o seu grupo desordenado. O mais pequeno avançou em direcção ao meu saco do lixo. Deu-lhe um pontapé. O saco rebentou. Havia lixo espalhado pela calçada – ossos de costeletas, pacotes de natas, restos de salada de tomate, restos de arroz, latas de atum e de cogumelos. A mulher disse “esse filho da puta não faz reciclagem”. Havia também espinhas e cabeças de sardinhas. O maior disse “podes comer essas ah ah ah” deu uma grande gargalhada, mas sem gosto. Penso que só tentava provocar o mais pequeno. E depois acrescentou “também era reciclagem” e então riu-se de novo, agora com prazer. E a mulher riu-se também. Tinha poucos dentes. E estava a fumar. O mais pequeno não riu e pediu um cigarro à mulher “dá-me um cigarro” e ela “foda-se, só me chulas” e o maior disse “paneleiro de merda”.
Continuei a fumar o meu cigarro. Agora o grupo analisava o meu lixo. Cambaleavam trazendo pequenos pedaços, pequenos dejectos até à luz do candeeiro de rua. Observavam com minúcia guardanapos usados, um copo partido, uma embalagem de manteiga Mimosa, pacotes de gelatina, duas cebolas podres. “C’stina…” disse o maior. “ó C’stina, porra… tu só dizes caralhadas a toda a hora… nem pareces uma gaja” e continuou a remexer. Abria com as mãos carcaças rijas, pão com cinco dias, à procura de qualquer coisa surpreendente. “Vai-te foder, meu cabrão de merda” disse Cristina. “Isso é mentira”. E era, até ao momento. O mais pequeno perguntou alto “o que é isto?” e ergueu o objecto amarfanhado para a luz. Era uma prata de chocolate. Cheirou. Lambeu. “É chocolate” concluiu.
Um deles olhou então para cima. Viu-me. Processou a informação com toda a paciência. E eu fumava com calma. “Dá-me um cigarro” disse. E eu não respondi. “Paneleiro de merda… mete os cigarros no cu!”. Atirei-lhe com a beata ainda acesa “foda-se!” gritou enquanto tentava desviar-se. Acertei na mulher. Cristina não deu por nada. Esgravatava o lixo e encontrou uma lata de cogumelos com dois ou três pequenos cogumelos laminados lá dentro e disse “olha cogumelos” e o seu cabelo começou a arder. O maior olhou-a e começou a rir. O mais pequeno tentava indignar-se comigo. Focava-me fechando um dos olhos “eu sei quem tu és, cabrão de merda… eu apanho-te” e Cristina ardia. Eu disse “cala essa boca, vai dormir” e fechei a janela.