Preocupações de Verão
Íamos para Sul, era tradição irmos para Sul. A tenda, os sacos-cama e as mochilas no banco de trás. Ela conduzia, eu nunca conduzo - ela grita comigo. O sol da tarde, algum vento saboroso a lembrar que é Verão, a estrada nacional qualquer coisa por ali fora, até lá ao fundo, ao pé de Marrocos e nós a meio do caminho, rolando com calma como se tivéssemos férias a vida toda. Estar de férias também é isso, fingir que o resto não existe e que se pode desperdiçar o tempo e a existência. Quem se preocupa com a realidade durante as férias apanha depressões e úlceras no estômago.
Eu ia a folhear o jornal, mas não era por preocupação. E muito menos por querer saber da realidade. Folheava o jornal enquanto falávamos pouco e ouvíamos música baixinho, era o B Fachada. A paisagem era feita daquele tédio bom, porque se repetia, se deixava tornar previsível. É bom caminhar por trilhos novos, sobretudo quando se sabe o que a estrada lá à frente reserva. Mais vaca menos ovelha, os campos eram todos iguais. As curvas todas familiares umas das outras. Os cruzamentos raros não surpreendiam, havia no espaço entre eles uma cadência. As férias são boas para darmos atenção ao que nunca importa.
Ela olhou de lado um qualquer título do jornal. Falava em pobreza e ela pensou sobre o assunto. Raramente pensamos assim nisso da pobreza a não ser quando o dinheiro nos falta. A pobreza dos outros é a nossa riqueza, o nosso luxo, o nosso conforto, aquele comprimido anti-angústia. Calculamos que ser pobre deve ser mau. E isso faz-nos sentir bem porque há outros que o são ainda mais que nós. Mas as férias fazem-nos reparar nas coisas quotidianas, nas notícias sobre atentados que matam dezenas de pessoas, nos números da sida em Áfirca ou no tal aumento da pobreza. A banalidade, à luz da falta de compromisso, pode ser um assunto muito sério. E ela questionou-se.
-Há coisas que não entendo...
-Então?...
Continuei a folhear o jornal, ela continuou a conduzir, quase distraída. Provavelmente a pensar nos pobres. Mas parecia-me intrigada e, como as curvas da estrada não abundavam, concretizou a ideia.
-Epá... mas o dinheiro não é fabricado?
-Tanto quanto sei...
-É que eu... que haja fome porque não há comida que chegue, eu compreendo... mas porque não há dinheiro?! Por que raio não fabricam mais e pronto?
Tentei responder. Ainda tentei enveredar pela lógica das convenções. Imaginar um esquema elaborado em que, de facto, fizesse sentido haver escassez de dinheiro para, assim, equilibrar o mundo. Mas o melhor que consegui foi:
-Oh!... e o papel que se gastava?...
Continuámos para Sul. Agora passava o Tiago Guillul na telefonia. Durante mais de 5 quilómetros não nos cruzámos com carro algum.
Eu ia a folhear o jornal, mas não era por preocupação. E muito menos por querer saber da realidade. Folheava o jornal enquanto falávamos pouco e ouvíamos música baixinho, era o B Fachada. A paisagem era feita daquele tédio bom, porque se repetia, se deixava tornar previsível. É bom caminhar por trilhos novos, sobretudo quando se sabe o que a estrada lá à frente reserva. Mais vaca menos ovelha, os campos eram todos iguais. As curvas todas familiares umas das outras. Os cruzamentos raros não surpreendiam, havia no espaço entre eles uma cadência. As férias são boas para darmos atenção ao que nunca importa.
Ela olhou de lado um qualquer título do jornal. Falava em pobreza e ela pensou sobre o assunto. Raramente pensamos assim nisso da pobreza a não ser quando o dinheiro nos falta. A pobreza dos outros é a nossa riqueza, o nosso luxo, o nosso conforto, aquele comprimido anti-angústia. Calculamos que ser pobre deve ser mau. E isso faz-nos sentir bem porque há outros que o são ainda mais que nós. Mas as férias fazem-nos reparar nas coisas quotidianas, nas notícias sobre atentados que matam dezenas de pessoas, nos números da sida em Áfirca ou no tal aumento da pobreza. A banalidade, à luz da falta de compromisso, pode ser um assunto muito sério. E ela questionou-se.
-Há coisas que não entendo...
-Então?...
Continuei a folhear o jornal, ela continuou a conduzir, quase distraída. Provavelmente a pensar nos pobres. Mas parecia-me intrigada e, como as curvas da estrada não abundavam, concretizou a ideia.
-Epá... mas o dinheiro não é fabricado?
-Tanto quanto sei...
-É que eu... que haja fome porque não há comida que chegue, eu compreendo... mas porque não há dinheiro?! Por que raio não fabricam mais e pronto?
Tentei responder. Ainda tentei enveredar pela lógica das convenções. Imaginar um esquema elaborado em que, de facto, fizesse sentido haver escassez de dinheiro para, assim, equilibrar o mundo. Mas o melhor que consegui foi:
-Oh!... e o papel que se gastava?...
Continuámos para Sul. Agora passava o Tiago Guillul na telefonia. Durante mais de 5 quilómetros não nos cruzámos com carro algum.
1 Comments:
Leio-te pela primeira vez e vais já para os "Marcadores".
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