quarta-feira, novembro 13, 2013

Poemas de um Outono Mais-ou-Menos Futuro #1

é uma cidade de mortos
de ausências
as pessoas vão faltando
sobram poucas para caminhar
pelas ruas
pelas estações de metro ou
pelas estações do ano
é tudo outono
e está tudo errado
as ruas estão quase vazias
eu estou escondido
abrigo-me onde posso
não me mexo muito

é uma cidade de gangues
sangue novo atrás do sangue
só pelo sangue
pouco lhes sobra para matar
está quase tudo morto
e eles ficam desorientados
apontam nem sabem para onde
apontam nem sabem porquê
ameaçam nem sabem quem
nem por que motivo

é uma terra de abandonados
dantes andávamos todos à solta
depois fomos ficando prisioneiros
e com medo
e depois fomos ficando fechados
e depois escondidos
e depois vieram e mataram alguns
foram matando mais e mais
sobrámos nós
mas somos poucos
somos fracos
somos perseguidos
não estamos prontos
e só não somos apanhados porque eles são muito estúpidos
temos alguma sorte

mudaram-nos o mundo e acabaram com ele
o paradigma do poder
que estava preso com ganchos de cabelo
trancados em fios de seda
caiu
como se esperava
ou como esperava quem pensou no assunto
- nem toda a gente quis saber do assunto

no princípio
mandava quem tinha a força
depois, mandou quem tinha a força e a habilidade
juntou-se-lhe a inteligência
a estratégia, o discurso, a astúcia
e outros ingredientes se foram juntando
até que nasceram gerações de líderes
que o foram só por terem sido gerados por líderes anteriores
e formaram-se novas tribos de gente que gostava de liderar
mesmo sem saber porquê
e de ter filhos que pudessem liderar
mesmo que não soubessem como
e foi tudo liderando
todos em conjunto
corporativamente liderando
até deixarem de fazer sentido

então
alguém com força e sem medo
naturalmente mas não legitimamente líder
decidiu começar a matar os outros

como era fácil
continuou

como era forte
ganhou poder e seguidores
que começaram a matar por ele
ora em nome dele
ora para que eles próprios não fossem os próximos
- a lealdade é três porções de medo, duas de astúcia e nenhuma de amor
não há espaço para o amor
quando se tem medo

e agora a vida é isto
e vivo-a como aconselham nos filmes:
«cada dia como se fosse o último»

mas o último dia não é um dia bom
é o dia mais assustador de todos
o dia em que se vislumbra a treva infinita
só na imaginação
antecipando todo o futuro feito de nada
como a queda mitológica do homem que nunca baterá no fundo
e cairá para sempre

e mais sempre

e outro sempre

sempre, todos os dias
todos os anos
todos os séculos
todos os milénios
todos os universos
e gigauniversos e metauniversos
segundo por segundo
um atrás do outro
nem devagar nem depressa
sempre
até nunca mais
porque o nosso fim acontece uma vez só e nunca mais acaba

nunca quis que cada um dos meus dias fosse o meu último dia
está tudo ao contrário
eu só queria viver cada dia
como se fosse o primeiro
com pleno direito a todo o espanto
e sem saber de mais nada

é uma cidade de ruínas ainda de pé
à espera de ir caindo
à espera das heras
das silvas
e dos cogumelos
do musgo a vincar o norte e a sombra

e nós
cada um na sua toca
como bichos estúpidos
usamos a defesa que temos
que é a ausência:
não estando lá, ninguém nos pode fazer mal
não ali
não àquela hora

aguardamos com paciência e alguma angústia
que os novos poderosos
na desorientação de quem não sabe mais o que fazer
nem a quem apontar
acabem por matar-se uns aos outros

e só não desejamos que isso aconteça
porque é moralmente inadmissível
mesmo quando não resta quem nos vigie e fiscalize a moral

quinta-feira, setembro 27, 2012

Irrelevantes fósseis

[sobretudo a ti, que só queres ser um eleitor
votar ao centro - e é por favor -
cumprir o calendário eleitoral
isto é, quando a coisa se propicia
que a vida não é só democracia
há sempre um centro comercial
e as obrigações do consumidor:]

tendes sempre ideias bestiais
contra o grão-poder dos capitais
mas falta-vos o tempo e a bondade
para fazer por vós, pela sociedade,
faltou-vos os colhões
e a decência
e alegais então vossa inocência
agora que vos faltam à miséria do conforto alguns tostões

podeis clamar por clemência
meter até cunha celestial,
neste país ninguém leva a mal -
se é por travessas, vem excelência;
se vier por portas, fica assessor,
ou secretário, ou assistente de senhor doutor -,
isto é Portugal
novecentos anos de plácida existência
e uns poucos menos de desistência

somos tão pequenos em Nação
e tão maiores à proporção
do meu metro e meio
e do teu e oitenta
e é esta mentira que nos alimenta
o espírito cobarde e quieto aqui
hoje, amanhã, há séculos e até ao fim
mas não me apontem o dedo a mim:
eu vivi e escrevi
não lutei muito, mas nunca me esqueci
de que existem outros, meus irmãos e vizinhos,
pobres no bolso, pobres no espírito,
pobres portuguesinhos

e é por vós que me acendo
quando tudo em mim se apaga
sois todos tão certos
e todos tão espertos
porém, humildes, pois pertence
ser assim, de uma maneira astuta e vaga,
pessoas correctas, modestas e dóceis
cravadas no sofá da sala, irrelevantes fósseis

e sois tão anarcas quando chove
na TV a carga sobre quem se move
sois tão radicais quando vos calha
e só mesmo a coragem vos falha
quando a dimensão paternal de quem governa
resulta num penhor ao fardo de palha
que comeis, à vez, nesta caserna
protestando que é vossa tal migalha

e eu não me mexo, eu fico calmo
para sair à rua e lutar falta-me um palmo
mas penso - e muito - e digo coisas
movo as mãos e a boca
não faço só o que posso
que esta voz não ficou rouca
a rezar o pai nosso
escrevo por mim, ainda não por nós,
mas escrevo até ao osso
e grito até perder a voz

somos marialvas e saloios,
somos algarvios, minhotos e alentejanos,
somos tudo junto e há muitos anos
mas tudo isso é pouco
se formos nada em conjunto
somos tão ordeiros em manada
e estamos todos sós e em sufoco
temos todos muitos sonhos, muitos planos,
e memórias ancestrais e orgulho ôco
em coisas que foram, sim, tão bem feitas
mas por homens bons de outras colheitas

não somos nem miragem
nem utopia
vivemos conformados e em democracia
não somos esta paisagem
nem dela o alimento
e o nosso pobre sustento
é lembrar de outros a passagem
«por mares nunca dantes navegados»
enquanto derivamos, revoltados
mas em sossego
por vergonhas que embaraçam o próprio ego
na esperança de que venham amainados
tomos de água que nos levem de viagem
daqui para fora
como se o país que é nosso
fosse agora
um lugar perdido na demora
de encontrarmos em nós próprios um colosso
que nos una, que nos funda, que nos nasça
entre os dedos, o coração,
a latitude e a casta
e que nos case, uns e outros, por amor,
à pátria, à terra nossa,
ao que vale a pena e o esforço, em redor

somos portugueses
tristes, abençoados
e sem saber como lidar com os legados
e a beleza dos presentes dos passados
somos gente com penas e com choros
gente com fados e com touros
preservámos sem critério mil tesouros
pendurámos cordões de ouro amargurados
nas santinhas do verão
para buscarmos, em qualquer lado, o perdão
mas sempre ignorando o real pecado

somos travestís de cidadão
alinhados, sem coragem nem comunhão,
contra um muro de gente sem raíz
que não percebe no do lado um seu irmão
e não entende nessa irmandade o seu país.

terça-feira, julho 03, 2012

Aquele, o Relvas

Aquele Relvas mete-me nojo
Não sabes quem é o Relvas?
Aquele, o Relvas, pá, o que é ministro.
Ele é ministro porque este país é um país de Relvas
E aquele Relvas é só mais um Relvas neste país
Aquele o Relvas é uma pessoa como as outras
Mas em mais Chico-esperto
O Relvas, aquele Relvas que é ministro, encosta-se ao poder
como um bêbado se encosta a uma parede
e depois mija o poder o todo
e cospe-se todo
e treme-se todo
e borra-se todo
aquele o Relvas é um bêbado do poder
o Relvas mete-me nojo
por mais doutor que ele seja
por mais diplomado que aquele, o Relvas, seja
não passa de um verme
um verme bêbado encostado à parede que o sustenta
que o suporta
que não o deixa cair
uma parede que ele corrói, esse verme
esse badameco desse Relvas
esse borra-botas, esse Relvas, esse merdas
esse chantagista
esse aprendiz do jogo sujo
aquele Relvas, aquele que é ministro e que é doutor
é doutor mas é lá na terra dele, esse Relvas
é doutor mas é na casa da mãe dele, aquele Relvas
saiu-me um doutor de pacote
embalado, pronto a licenciar, pronto a doutorar, a canudizar, a diplomizar, a pendurar-se na parede
numa moldura
na parede do poder
esse Relvas, aquele Relvas, aquele que é ministro, que é um analfabeto certificado por uma universidade qualquer
esse gajo, pá, esse gajo é um gajo qualquer
é isso que ele é:
aquele, o Relvas, não passa de um gajo qualquer.
De um Relvas qualquer.
Só que em mais esperto do que o mundo todo
Em mais esperto do que o seu pequeno país todo
Em mais esperto do que os seus professores todos
E os seus reitores todos e as suas senhoras da secretaria todas que lhe carimbam os certificados e diplomas todos
Esse Relvas é um cretino
E até tem carimbo, aquele Relvas que é ministro
É um cretino carimbado e ministerizado.
Por mais chantagens que ele faça e por mais sujo que ele jogue
Aquele Relvas não passa de um bêbado a limpar as mãos à parede
Por mais poderosa que seja a parede.
É por isso que ele me mete nojo
Esse Relvas, aquele que é ministro,
Esse patético retrato emoldurado e pendurado desta tristeza de poder que me governa o país.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Os Sortudos (de Charles Bukowski)

[é a primeira vez que me aventuro a traduzir um escritor que admiro. aqui fica.]

presos no trânsito, debaixo de chuva, às seis e um quarto da tarde,
estes são os sortudos, estes são
os plenamente empregados, a maior parte com os seus rádios aos berros
enquanto tentam não pensar nem lembrar-se de nada.

é esta a nossa nova civilização: os homens, da mesma maneira que
já viveram em árvores e em cavernas, agora eles vivem
nos seus automóveis e nas auto-estradas e

as notícias locais são ouvidas uma e outra vez.
nós vamos em primeira e metemos a segunda e reduzimos de novo para primeira.

há um desgraçado empanado na faixa da esquerda,
ele está de pé encostado ao separador da auto-estrada
com um jornal por cima da cabeça, à chuva.

os outros carros têm de se desviar do carro dele, meter-se à força
na faixa do lado, à frente de carros determinados em não os deixar entrar.

na faixa à minha direita um condutor está a ser seguido por um
carro da polícia com as luzes azuis e vermelhas a piscar – ele seguramente
não pode ir em excesso de velocidade já que

de repente cai uma chuvada gigante e todos os
carros param e

mesmo com a minha janela fechada sinto o cheiro a queimado
da embraiagem de alguém.

só espero que não seja a minha

e a parede de água diminui e lá vamos nós
metemos a primeira; estamos todos parados
bem longe de casa e eu memorizo
a silhueta do carro à minha frente e a forma da

cabeça do condutor ou
o que
eu consigo vislumbrar acima do apoio do banco enquanto
o seu autocolante no pára-choques me pergunta
JÁ DESTE UM ABRAÇO AO TEU PUTO HOJE?

de repente eu tenho que gritar
e lá cai mais uma parede de água e o
gajo na rádio diz que há 70 por cento
de possibilidades de aguaceiros amanhã à noite

quarta-feira, outubro 12, 2011

Relato minimalista antigo

Eu vinha a descer por entre as pessoas que ficavam para o fim e que ainda enchiam os becos, os passeios e os degraus, de copo na mão, de garrafa na mão, de cigarro na mão, de cabeça nas mãos. Trazia a viola debaixo do braço e houve um rapaz que se chegou perto e meteu conversa. Trazia o seu cigarro e a sua cerveja. "Posso tocar um bocado?" - eu não tinha pressa. Se ia para casa era porque já não tinha amigos. Haviam de estar caídos pelas valetas, sentados no chão encostados a paredes, adormecidos em casas-de-banho ou quase a adormecer em camas casuais ou sofás ao calhas ou esquinas escuras mais à mão. Passei-lhe a guitarra. Eu não estava sóbrio, ele não estava sóbrio. Mas a guitarra estava afinada. Um guitarrista no seu estado normal testa uma guitarra fazendo soar um sol maior ou um mi menor, ou algo do género, antes de fazer qualquer coisa realmente importante com o instrumento. Um pretendente a guitarrista, bêbado, às quatro da manhã da noite de Santo António aborda a guitarra com um dó sustenido menor de sétima, com a nona aumentada. "Hummmmm... isto não me está a soar bem" disse ele com ar desconfiado e eu pensei "opá, fode-te". Começou a mexer na afinação e eu acendi um cigarro.

sexta-feira, junho 03, 2011

O Mergulho ou a Arte do Abandono (excertos)

- O mergulhador anónimo
pesa sobre a terra
pelo mundo
as tribos
todas o permitem

o planeta deixa.
Ocasionalmente ignora

- o bom mergulhador
não volta.
Nada até que o esqueçamos e

será aquele estranho eterno
anónimo simplificado e
encurralado no próprio mergulho

- o mergulho
é um acto submisso
uma consequência da condição
o herói não mergulha

se posso, mergulho.
Com cobardia e convicção

- mergulharei no fogo
alguém saberá o quando
mas que eu não o assinale

os infortúnios do mergulhador
são ausências
rebeldes e ocultas

- posso afogar-me no tejo
ou no lavatório
a norte ou a sul do mondego
em águas cristalinas
em pó de arroz

será uma questão de metodologia
e de predisposição geográfica

- a viagem que faço
indo e vindo
num tapete submerso

a queda o abrigo a origem:
pecados.
eventualmente mortos

- um submisso numa catástrofe
não é positivo
não ajuda ninguém

somos sofredores
e só por isso
mergulhamos

é então
que a paixão vem a nascer

- o mergulhador anónimo
não tem casa
o abandono
é a única riqueza que possui

e há ruas tão belas
no meio de estar só
noites tão escuras
e tanto amor rarefeito

- com estranheza e satisfação
- é deste modo que encaro
a partida dos outros

no vazio
repousam construções imensas
repletas de guerra e de piedade

- a água não se detém
jorra por mim
ausculta-me toca-me

se não paro
afogo-me

acendo as velas
é noite e
não durmo

- durante o dia
observo os mestres
à sorte
como se fossem um espelho limpo

e esse líquido maduro
que me quer eterno
esse composto frágil
feito de náufragos

- ó! vida terrível
de gasto
de miséria

eis-me entre o cansaço e o sossego

silêncio pleno
paisagem sem mergulho

O Abandono


- a velocidade a que sinto
todas as coisas:
passageiro o tempo
materna a água

ou o ódio
o esvaziamento de
todas as salas do corpo

- amar o mundo
a morte
o medo

descer a rua
descer à terra
visitar o fundo

adormecer crescido
inundado

fugir do esforço
da devoção
nascer sentado

esquecer a esfera
adormecer no banho
trepando a cama
subindo pela escuridão
e por ti

carícias aumentadas ao espelho
à lupa
à solidão

memórias náufragas
o esquecimento


- não temas a minha ira.
Quando eu te odiar
será com veneno suave
possivelmente doce


o mergulhador
é um ser agradável
mesmo quando traz escafandro

- o transtorno:
corrida no escuro
à roda dos medos
como se a memória ficasse

não fica.
Ergue-se do túmulo
arrancando os cabelos
e os homens
que restam

- tantos se esforçaram
também sem nome
em nome de um mergulho

momento fugaz
essa derradeira glória

- planeta das flores
das águas
das margens coloridas
do excesso
da espera

o mergulhador anónimo
não morre
não quebra

abandona.
Desliza pela existência
até ao cadáver.


[O Mergulho (...) é o segundo painel do Tríptico Cardioconcêntrico, um inédito de 2003]

quinta-feira, maio 12, 2011

Niagara

Foi uma visita inesperada. Eram duas da manhã, ou quase, e tocaram-me à porta. Eu estava sozinho em casa. Eu vivia sozinho e passava a maior parte do tempo sozinho. E, sobretudo, não me importava com isso. Nesse tempo, estar sozinho era bastante bom. Via televisão e lia livros. Via mais televisão do que via livros. Era mais fácil. Mas às vezes lia mesmo. Ficava uma hora, duas horas, páginas atrás de páginas. Depois, esquecia-me disso. Habitualmente, lia coisas e metia os livros em cima da mesa ao pé do gira-discos e nos dias seguintes punha-me a ver televisão, séries americanas, filmes americanos, televendas, Euronews. Passados uns dias, não me lembrava que livro tinha começado a ler pela última vez. Na mesa acumulavam-se títulos, O Deserto dos Tártaros, O Estrangeiro, O Jogador, O Velho e o Mar, Mocidade, alguns em inglês, The Most Beatiful Woman in Town, títulos chineses traduzidos para francês e do francês reescritos em português, Uma Cana de Pesca Para o Meu Avô, Estreia Fatal. Quem olhasse para aquela mesa haveria de pensar “oh que gajo intelectual” mas era mentira. Aqueles livros eram só esquecimento. O que eu cultivava mesmo era o meu prazer pelas pipocas, cervejas do Lidl e séries americanas. Essa era a minha verdadeira cultura.
Abri a porta, eu estava em calções, chinelos e de camisa de manga curta, aberta de cima a baixo. Levei a cerveja na mão e tinha a barba grande, toda desalinhada. Na altura eu não ligava muito à minha aparência. Hoje também não. Era a Rita. E eu disse “Rita?!” com aquela expressão de “what a fuck?!” e dei um gole na cerveja ainda extremamente confuso e surpreendido e, na verdade, um bocado lixado – estava a ter um serão tranquilo e, naquele dia, precisamente naquele dia, estava mesmo a ler. E ela disse “Oi… desculpa” e fez aquele sorrisinho de quem está com vergonha mas não tem vergonha nenhuma, aquele que as mulheres fazem e torcem assim a mão e encolhem os ombros e fazem o tal sorriso enquanto dizem estas coisas “oi… desculpa” sem um pingo de sinceridade. Elas sabem que estão a ser inconvenientes. A Rita sabia que aquilo era meio embaraçoso e que a hora era indecente. E disse “espero não estar a incomodar” com a mesma expressão de olhos muito abertos como quem pede mais ou menos desculpa e depois “importas-te que entre?”. Eu fiz assim com a mão com que segurava a cerveja e saí-lhe da frente. Ela passou e eu fechei a porta “põe-te à vontade”, ela foi para a sala e sentou-se. A televisão estava desligada e eu estava a ler a Fang Fang, o livro estava aberto. Ela apontou para o livro e perguntou “quem é?” e eu “é uma chinesa… queres alguma coisa, uma cerveja?”. Ela aceitou. “Olha que são do Lidl”. Ela disse que não fazia mal.
A Rita não era minha amiga. Era mais ou menos. A Rita era a noiva de um grande amigo meu. Conhecíamo-nos, eu e esse grande amigo meu, desde os tempos do secundário. À Rita conhecia-a há coisa de um ano, desde que a relação deles tinha ficado mais séria. Jantei em casa deles três ou quatro vezes. Eles jantaram em minha casa uma vez. Não correu muito bem. Não sou grande cozinheiro. Foquei-me mais nos vinhos. Percebi que não gostaram. É uma das desvantagens de se estar sozinho e de não se ter companheira ou mulher ou namorada ou amiga de ocasião ou uma gaja qualquer que faça as vezes: jantares com um casal são tremendamente desequilibrados. O casal passa a ser uma espécie de instituição. Não é só ele; não é só ela. Em termos práticos, eles funcionam no modo “ele + ela” e isso é desagradável quando nós – eu – somos – sou, vá, o anfitrião porque não tenho ninguém com quem fazer equipa. Nessa ocasião, senti-me rara e profundamente só. Dois contra um. Eu perante a instituição correcta: o casalinho. A união, o futuro, os filhos em potência, uma vida a dois. Senti-me pressionado “então… e continuas sozinho?” e eu “epá, pois… da última vez foi a merda que se viu… e eu, para me chatear, não preciso de gajas… desculpa, Rita… não preciso de mulheres… sou perfeitamente capaz de me chatear sozinho”. Fiz uns rojões, mas correu mal. Os mojitos saíram miseráveis e, por isso, atirámo-nos aos vinhos mais cedo do que o previsto. Distraí-me com a salada e salguei-a também demais. Felizmente a sobremesa era gelado. Daqueles do Lidl. Eles eram perfeitinhos e vestiam roupa passada a ferro. Eu deixei queimar os rojões e parti a rolha da segunda garrafa.
Quando cheguei com a cerveja para a Rita, estava ela a folhear a Fang Fang. Não gosto que me mexam nos livros e fiz-lhe um sorriso ameaçadoramente amarelo. Acho que ela percebeu. Largou o livro e endireitou-se. Pegou na cerveja e agradeceu. “Então… o que fazes aqui?” perguntei eu e depois acrescentei “desculpa a pergunta”. Estava desabituado destas coisas. Era brusco e nem dava por isso. Senti-me um bicho. Ela disse “Não, não, tudo bem… eu compreendo que a situação seja estranha, vir aqui a tua casa a esta hora da noite…” Sim, a parte da hora fazia-me confusão. Mas o que verdadeiramente me intrigava era isto: porquê sozinha? E então eu disse “e vieste sozinha porquê?” Não, eu não era uma pessoa delicada. Ela não respondeu e fixou o olhar no vazio. Deu um gole na cerveja. Depois, começou a chorar. Agora, sim: o embaraço era pleno. “Foi o Mário… foi o filho da puta do Mário”. O Mário era o meu amigo.
E então a Rita contou-me a história. Foram à América e ao Canadá. A América é os Estados Unidos, pronto. Ver as cataratas do Niagara. “Comprei lá estes bonequinhos de handicraft. Vêm do tempo dos iroquois.” Era um boneco feio. “Foi o Mário que mo comprou, em Buffalo” e depois desatou a chorar de novo. “Nós queríamos começar a viagem em Niagara Falls, uma espécie de lua-de-mel, mas para assinalar o noivado.” Eles tinham dinheiro, tinham bons empregos. Podiam fazer estas coisas. “Depois íamos a Toronto, que ele tem lá uma tia. Ficávamos uns dias e depois íamos a Las Vegas e à Disneilândia.” O esplendor da fantasia: dinheiro, mulheres nuas e pessoas vestidas com fatos de rato Mickey. Já vi pior. “Mas não fomos… aquele filho de uma cadela” e voltou a chorar. Dei-lhe um guardanapo de papel. Assoou-se. Eu fui buscar mais cerveja. Quando voltei, ela estava a fumar. Eu não sabia que ela fumava. Fiquei contente, assim podia fumar também sem sentir que estava a incomodá-la. “Vês isto?” perguntou, segurando o cigarro “isto é culpa do anormal do teu amigo, sabes? Eu não fumava… Mas depois, uma pessoa com os nervos… Estávamos no nosso hotel em Niagara Falls, do lado dos US (ela pronunciou mesmo “you ésse”), e íamos caminhar à beira das cataratas. Isto tinha tudo para ser romântico, sabes? Uma pessoa passa anos a ter sonhos, a desejar ambientes idílicos. E foi isso que conseguimos. Tudo bem programado. E a viagem tinha tudo para correr bem. Mas, vê tu, era a nossa primeira manhã ali e ele recebe um telefonema da Rebecca, – a Rebecca era uma prima canadense, explicou-me a Rita, filha da tia de Toronto – essa porca… falaram, falaram, falaram… Quando desligou, disse-me «querida, preferia que fôssemos já para Toronto» e eu achei aquilo muito estranho. Diego, ele é que escolheu as cataratas! Por mim, tinha ido para Cancún… ao menos, tem água que dá para mergulhar, não é como aquilo, só água cheia de violência, um barulho infernal, uma pessoa fica toda molhada. Sim, é bonito. Mas não justifica a viagem. De qualquer maneira, o Mário quis ir LOGO para Toronto. Ora, a Rita não é parva, não é? Se fosses tu, não desconfiavas” – eu disse que sim, pois… - “claro, a coisa era estranha. Quando fomos ao hotel, ele foi à casa-de-banho arranjar-se e eu apanhei-lhe o iPhone. Pensava que eu andava aqui a dormir, não? Às vezes parece que não me conhece. Entrei-lhe no Facebook. E vi a troca de mensagens com aquela vaca – ai que descarada, que puta, pá! Que nojo…” Ela estava a ir bem. Fui buscar mais cerveja. Tinha muitas no frigorífico. Para minha surpresa, a história estava a agradar-me. Era melhor do que a da Fang Fang. Não era tão bem escrita, mas tinha graça e prometia coisas boas lá mais para a frente. Quando voltei, acendia ela outro cigarro. Mas, agora, fumava com um ar plácido, sem tensão. Diria mesmo com gosto. Eu acendi um também. Por solidariedade. E porque me apetecia. “Queres pipocas?” disse eu, mas ela recusou com a mão. Ou eu já tinha bebido demais, ou ela estava com uma pose diferente daquela encolhida e meio magoada com que começara o nosso serão. Agora, parecia uma mulher segura. Praticamente atraente. “Sabes o que lhe dizia essa galdéria, sabes Diego? Dizia assim, só que em inglês, «não imaginas o quanto me excita toda a imoralidade desta nossa brincadeira…» - nem quis ler mais.”
Estava calor e convidei a Rita para irmos à varanda, ver o rio, fumar um cigarro. Pareceu-me que ela gostou da ideia. A história dela e do Mário e da Rebecca tinha qualquer coisa que me agradava. Por um lado, surpreendia-me que o Mário, o Mário que era uma pessoa séria, se metesse em aventuras destas. Por outro, achava a personagem de Rebecca a personificação da sacanice feminina e isso atraía-me, desde logo. “E o que é que fizeste?” A Rita contemplava a rua, serenamente. “Não disse nada, deixei-me ir… Metemo-nos no carro a caminho de Toronto, como ele queria. Pensei que pudesse confrontá-los, mudar o rumo das coisas, alterar a situação… partir a tromba àquela vaca desavergonhada… castrar o meu namorado – riu-se muito quando disse isto e eu ri também, foi espirituosa – ele bem que o merecia… Mas não, não me deram tempo. A caminho, parámos num desses american diners de beira de estrada, cheios de camionistas e a cheirar a bacon e ovos estrelados. Fui à casa-de-banho e, quando voltei, a mesa estava a vazia… Deixou-me a mala de viagem e a minha mala de mão…” Ela sorriu quando disse isto mas com tanta tristeza que lhe caíram lágrimas. Até a noite ficou amarga. Eu bebi cerveja. Ela bebeu cerveja. Fumávamos e calávamo-nos. E então eu disse “vê as coisas pelo lado positivo: a esta hora está ela a tirar fotografias com a Minnie... coitada”. Acho que ela riu e limpou as lágrimas.

terça-feira, maio 03, 2011

Pimentos padrón

Tu sais à noite com a tua mulher. Vão jantar primeiro. Provavelmente, comida indiana. A seguir, então, vão sair um pouco. Encontram amigos, bebem caipirinhas, mais tarde bebem cerveja. São apresentados a alguns amigos dos amigos. E tu mal te apercebes disso – não é coisa que te prenda a atenção.
Chegam a casa, tu e a tua mulher, e ela diz-te “aquela Ana Filipa é muito bonita, vistosa…” Fazes um esforço para perceber quem é a Ana Filipa e a que propósito se fala dela. Não obténs resultados. A tua busca cerebral é em vão. Desistes e assumes “não faço a mais pálida ideia de quem seja a Ana Filipa”. Bebeste vinho ao jantar; bebeste whiskey a acompanhar o café; bebeste duas caipirinhas; bebeste duas cervejas. “Tu também… nunca reparas em nada, nunca te lembras de ninguém”. Bebeste um copo de água antes de te deitares e de beijares o ombro da tua mulher.
Dias mais tarde, vais com a tua mulher a uma festa em casa de uns amigos. Há gente que conheces, gente que não conheces e, muito provavelmente, gente que já nem te lembras que conheces. Sorris à tua mulher. Reparas em alguém lá ao fundo da sala. Uma mulher mais nova que tu num vestido leve e decotado. Reparas que tem curvas. E cabelo encaracolado. Ela vê-te. A tua mulher também te está a ver. Está a ver-vos aos dois. A outra mulher sorri-te e acena-te. Oh, ela conhece-te. Sorris de volta, tentas compreender e pensas “Aaaaahhhhhhh… Então ESTA é que é a Ana Filipa!... Jesus Cristíssimo!...” E sorris à tua mulher que está ao teu lado. Mas ela nem olha para ti. Ignora-te. Barras um pouco de paté na mini-tosta. Dás um gole no Martini. Dizes “aquela lá ao fundo é que é a Ana Filipa, não é? Já me recordo, sim… Sim, é, de facto, bonita.” A tua mulher finge que não te ouve. Está a comer um camarão e a beber. Preferiu vinho verde. Olhas de novo para Ana Filipa. Sentes angústia. Há qualquer coisa de injusto nestas situações.
A caminho de casa, a tua mulher faz o resumo e o balanço da noite. Tu estás concentrado num fio de um pimento padrón que ainda tens preso entre os molares. Dizes “sim, sim”. Ouve-la dizer, lá pelo meio, “ai, ela é tão convencida” e continuas a tua luta com o fio e dizes “a-ham”. E depois ouves “meu Deus, ela é tão bimba” e consegues finalmente tirar o fio de entre os dentes e dizes “pois, imagino”.

segunda-feira, maio 02, 2011

Com um Bic encarnado

Espetei a pá na terra endurecida. Uma terra amarela com uns tons avermelhados, às vezes. Só queria aproveitar aquele sossego. Guardá-lo num frasco e esperar que tudo ficasse assim calmo.
A tarde já não estava para durar. O sol já não era forte, descia com toda a sua tradição. Era um gesto vulgar, o do sol. Uma coisa já banalizada. Enterrava-se nos cabeços a Ocidente. Sem surpresas. Sem pressa nem vagar.
Na geleira, no porta-bagagens, ainda havia cerveja. Tirei uma. Saquei a carica com o isqueiro. Aos anos que eu não sacava caricas com um isqueiro. Era um Bic encarnado, com que acendi o cigarro, a seguir.
Aquela cerveja e aquele cigarro, o sol e a terra dura, entre o dourado e a cor do sangue. Ena, lá estava eu a pensar como se fosse um poeta, caramba. Eu sozinho ali, a fazer listas e balanços na minha cabeça. Havia ervas, tufos raros e espaçados. O chão era mais poeta do que eu. Uns arbustos ao calhas. Uma estrada nacional sem gente, sem carros. Sem bichos. Não havia vento. Às vezes vinham brisas tão ao calhas quanto os arbustos. Não havia pássaros. Nada acontecia se eu ficasse quieto. Se o meu coração parasse, aquele sítio saía numa polaroid quadrada. Tirada por Deus. Ou por ninguém. Uma polaroid espontânea. Cósmica.
O meu coração podia parar. Há momentos que eu gostava de fotografar com violência e alma e aquele era um desses momentos. Fotografava e depois revelava-o com um líquido metafísico. Gostava de ficar com esses momentos na cabeça como tatuagens com cheiros e sons, palpáveis ao pensamento. Queria fabricar memórias com a respiração. Guardar aqueles bafos de fumo e goles de cerveja e fazer com eles uma estátua à existência, sempre ao pôr-do-sol, uma coisa assim infinita. No meio do nada. Com contornos duros.
Há momentos que eu gostava de fotografar com gelo, com a respiração e com os olhos. Mas os olhos não guardam nada. São só berlindes com mira telescópica. A vida passa-lhes à frente e eles não memorizam coisa nenhuma. O meu armazém das coisas sempre foi mais o estômago.
Ali estava eu, a pensar na vida. Todo cheio de lirismos e existencialismos. Que é da vida se não pensamos nela, não é? Só existimos quando damos por isso. E esta ideia nem sequer é minha.
Pensava na vida e pensava na morte. A circunstância era adequada. Nunca fui pessoa de andar a matar. Mas fossem bichos ou fossem pessoas. Fossem traças ou escaravelhos. Quando era puto, ainda matava umas formigas, umas moscas. Mas depois fiquei pacífico e já nem queria saber disso. Nem quero.
Abri mais uma cerveja. Acendi mais um cigarro. Apeteceu-me ouvir música, mas não tinha como. Imaginei o I Can't See You do Tim Buckley. Não. Era um tema demasiado nervoso. O momento era mais de sossego e de retiro. Foi então que a minha memória sugeriu, sem eu ter feito nada, o Strange Feelin' e eu fiquei feliz porque a minha memória ainda me compreendia. Era uma amiga fiel. Tal como o Bic encarnado.
E ali estava eu, numa espécie de deserto, à beira de nada e com nada fundamental nas mãos. A apologia do vaizo. A elegia da minha existência. Nem um grilo como testemunha e o sol a pôr-se.
E ali estava ela. Completa, acabada e cada vez menos morna. Cada vez mais morta a cada minuto. Olhei para a terra remexida e sem sinais. Não lhe pus uma cruz na campa. Não pus coisa nenhuma naquela campa. Só o meu suor. Fui eu que abri aquele buraco. E fui eu quem o cobriu de terra. E ao pensar nisto lembrei-me d' A Morte de Ivan Ilitch. Nem sei porquê. São coisas que nos vêm à cabeça, é morte e a gente associa. Morte é morte. Podia ter sido a Morte em Veneza. Mas prefiro Tolstói.
Ela não agonizou como Ilitch. Tomou comprimidos e mandou-me uma mensagem a pedir que a fosse buscar. Deixou a porta entreaberta. A das traseiras, que dá para a cozinha. Quando cheguei, estava no sofá, sentada, a cabeça pendida para trás. Sem pulsação. Olhos e boca muito abertos. Tinha vestidos uns calções de futebol. Da AS Roma. E uma t-shirt das tintas CIN. Não tinha soutien. Notava-se.
Não a enrolei num lençol. Não lhe fiz mortalha. Nem chinelos lhe enfiei nos pés. Peguei nela assim, como estava, e pu-la no carro. Como se fôssemos embora. Passear, outra vez. Ver o caminho, apanhar sol. Ver o mar do Sul. Mas não fomos. Levei-a para lá, para o tal deserto da polaroid. E deitei-a numa cova feita por mim. É isso.
A verdade é que sempre sonhei enterrar alguém no deserto. A beber cervejas e a fumar cigarros ao pôr do sol. E depois ir-me embora a conduzir com as janelas abertas e a pensar em coisas fúteis. E a ouvir coisas estranhas na rádio. Relatos de futebol de clubes desconhecidos das divisões distritais. Coisas assim.
Abri mais uma cerveja. Fechei a bagageira. Já não havia sol, só aquela coisa ruborescente no céu, de um lado, e o azul escuro do outro lado do mesmo céu. Acendi outro cigarro e sentei-me ao volante. O carro não tinha rádio. Era um carro velho, à minha medida. Arranquei. E pensei "havemos de repetir".

quarta-feira, abril 20, 2011

A trovoada

Um dia, o gajo, aquele tipo das fotografias detrás do balcão, de quem falei, decidiu voltar. Ele não tinha vergonha. Não espantou que voltasse. Na altura, eu tinha decidido acalmar. Arranjei namorada. Chamava-se Maria e não era pelo nome que se distinguia. Ela era linda. Era morena, tinha mesmo ar de menina e uns olhos belíssimos que ficavam à sombra das pestanas mais longas que já vi.
Um amigo disse-me “o Raul é o tipo de gajo que tu não queres que a tua mulher conheça”. Bom, eu fiquei curioso com isso. Porquê? “Ainda por cima, a Maria…” Dessa vez não perguntei o porquê.
Eu era uma pessoa segura de mim. E não tinha problemas com isso de o Raul andar de novo na zona. Por mais lendário que fosse, ele e os seus retratos e as suas dívidas. Nos retratos, nem parecia assim tão bonito. Era um homem normal, achava eu.
Estávamos numa espécie de festa, em casa de alguém. A casa tinha vista para o rio. Chovia torrencialmente e trovejava muito. Era uma tempestade imponente. Mas estava calor, um calor muito abafado, muito húmido. Diria que estavam mais de 30 graus. Éramos uns quantos e o dia tentava a custo clarear. Mas o céu estava tão negro que era difícil perceber se amanhecia ou não. Mas deviam ser umas sete da manhã. Era de sexta para sábado, acho eu. Na altura, éramos novos. Se calhar foi durante a semana, de segunda para terça ou de terça para quarta. Não nos fazia diferença. O tempo existia, fosse dia ou fosse noite, para desfrutarmos dele. E desfrutávamos. Não nos custava muito. Na pior das hipóteses, arrependiamo-nos de qualquer coisa dois ou três dias depois, quando voltássemos a estar sóbrios. Eu estava com a Maria e havia mais pessoas. Talvez vinte, talvez menos. E chegou o Raul e um amigo nosso. E eu finalmente conhecia o Raul, em pessoa. Um tipo magro, mas elegante. Não muito alto. De cabelo escuro, curto, despenteado. Ele era todo despreocupação. Tinha uma maneira desarrumada de estar bem vestido. Por momentos, quis ser como ele e logo a seguir pensei “não, pôrra, então? Não vaciles, pá”. Mas ele tinha pinta. Barba de três ou quatro dias e camisa de mangas arregaçadas, casaco ao ombro. Vi a Maria a olhar para ele. Vi-o a olhar para a Maria. Lembro-me que senti ciúmes.
A chuva não parava e a trovoada também não. Enquanto eu olhava os relâmpagos sobre o Tejo, o Raul ajudava a Maria a escolher a próxima música numa sessão de YouDJ. Toda a gente já tinha bebido muito, incluindo eu. Alguns tinham fumado erva. Eu não. O Raul tinha feito de tudo. Até tinha trazido coca e tinha partilhado. A Maria não tocou em nada e isso deixou-me aliviado ou até contente. Não estávamos juntos há muito tempo, era coisa de duas ou três semanas. Não lhe conhecia bem os hábitos e os gostos. Sossegou-me que não se tivesse deixado seduzir pelo montinho de pó em cima da mesa de vidro. Mas, entretanto, de copo na mão, encantava um Raul absorto que lhe observava as pequenas tranças. Ficava com um ar de princesa da Disney quando as prendia assim, na parte de trás da cabeça. Ela era tão bonita.
As bebidas iam terminando e as pessoas iam-se cansando ou desesperando por mais. O dia conseguia, finalmente, clarear um pouco o negrume do céu. Mas a chuva continuava, sempre forte e intensa. E os trovões e os relâmpagos. Era Raul quem agora escolhia as músicas. O gosto dele não era grande coisa. Pouco coerente, pouco criterioso. Demasiado óbvio em certas escolhas. Quando terminou a bebida, disse “malta e se fôssemos amanhecer para a praia?”. Ele falava assim. Iríamos “amanhecer” para a praia. Não iríamos para a praia ser estúpidos e apanhar uma molha gigantesca, podres de bêbados. Ele era um poeta. Tinha trinta e tal anos e fazia poesia de balcão. Irritava-me. Amanhecer para a praia…
Mas as pessoas gostaram da sugestão. Algumas, pelo menos. Uma delas foi a Maria. “Vamos” disse ela. E pôs-se ao lado do Raul. Eu não disse nada. Houve mais umas oito pessoas que disseram que sim, ‘bora. Mas só vieram mais duas. E aí fomos nós, colina abaixo, apanhar o comboio para Carcavelos no Cais do Sodré. Tudo porque o Raul queria ir amanhecer para a praia. Obviamente, amuei. A Maria notou. Passou-me a mão pela cabeça como quem diz “oh pá, eu sei que isto te aborrece, mas está a ser tão fixe” e eu irritei-me mais um pouco. Desviei os olhos e apeteceu-me chamar-lhe puta de merda e virar as costas, ir-me embora. Mas não, disse só “oh, deixa-me”. E pensei “cadela, se eu não gostasse de ti…”
Raul dominava o mundo naquela carruagem onde só nós existíamos. Mas dominava ainda mais Maria que o absorvia com os olhos cansados mas atentos. Ele contava histórias dos tempos em que tinha estado fora. Tinha ido para Londres e para Budapeste. E eu pensei se nos pubs londrinos também haveria retratos seus atrás do balcão. Tinha estado duas semanas na Grécia, onde foi preso – por engano e, por isso, logo libertado. “Pisguei-me de lá assim que saí, eles são malucos e metem é iogurte em tudo”. Ele conhecia a Grécia como a palma da minha mão.
Chegámos a Carcavelos. A chuva abrandou um pouco mas a trovoada não. Até parecia mais forte e mais intensa. “E se fôssemos ao banho? ‘Bora lá, não sejam mariquinhas”. A Maria disse “não trouxe biquíni” e riu-se. Ele sorriu “oh, estamos em família… eu vou todo nu”. Maria olhou para mim. Eu encolhi os ombros. Era-me indiferente, por mais que me magoasse. Ela deixou-se ficar “não… deve estar fria”. Raul suspendeu o sorriso. Depois, despiu-se todo e correu para o mar. Atirou-se e, quando veio ao de cima, gritou “wu-huuuu está tão boa! Seus mariconços, andem lá!” e então caiu um raio no mar e o Raul desapareceu por uns momentos. E depois apareceu mas a boiar, inerte. A Maria correu direita à água aos gritos “Raul! Estás bem, Raul?” e eu peguei no meu casaco e voltei para a estação de comboios.

terça-feira, abril 19, 2011

Mitos e lendas do meu bairro

Se o karma existe mesmo, a próxima vida deste tipo vai ser penosa, longa e sem esperança. Todas as tascas do bairro, que não eram poucas, exibiam a fotografia do homem. O mesmo retrato atrás de todos os balcões. Cheguei a pensar que fosse alguma espécie de santo ou mártir da zona. Mas não. Ele era a lenda. E tinha um dom. Ou mais que um. Tinha vários dons. Mas falava bem, esse era o seu principal talento. E era charmoso. E era descarado. E tinha tanta franqueza na sua enorme lata que se tornava difícil resistir-lhe, dizer-lhe que não. Por isso, conquistou facilmente o direito à fotografia atrás dos balcões, ao lado dos letreiros das “bebidas expostas” que “são para consumo no estabelecimento”. Ele tinha conta em vários sítios. Não estou a falar de umas poupanças na Caixa de Crédito e de uma conta ordenado no Montepio Geral. Estou a falar de bagaços anotados, aguardentes assentes, imperiais apontadas e uísques velhos rabiscados nas sebentas de todos os cafés, bares e prostíbulos numa área de seis quarteirões. Diz o povo que, tudo somado, dava para cima de seis mil euros. Não sei se é verdade ou exagero. Sei que os retratos ainda lá estão pendurados.

quarta-feira, abril 13, 2011

Numa cama, numa casa qualquer

Levantou-se, cabelos desgrenhados, t-shirt amarrotada e suja, coçou-se, foi à cozinha e bebeu água. Pôs a cafeteira ao lume e sentiu o cheiro bom da manhã. Era Primavera, estava sol, era cedo. Começou a cheirar a café fresco, foi lavar os dentes. A barba de quatro dias pedia lâmina. Mas ele não tinha tempo. Abriu mais a janela da cozinha e sentiu uma brisa morna. O carteiro passou lá fora e deixou-lhe qualquer coisa na caixa. Fez torradas e serviu-se de café. Antes de se sentar foi à caixa do correio buscar o jornal diário e o que mais houvesse – contas, um aviso de corte de electricidade, publicidade a um supermercado, flyers de yoga, flyers de reiki, flyers de restaurantes indianos, flyers de restaurantes chineses, uma proposta da Cofidis e um envelope sem remetente. Começou pelos flyers de reiki.
Acabou as torradas mas ainda tinha café para beber. Antes de se dedicar à leitura do jornal, olhou de novo o envelope. Trazia apenas o seu nome e a sua morada e um selo de remetente francês. Ficou intrigado mas não o suficiente para não se embrenhar primeiro na leitura da página desportiva. Leu-a quase toda e foi tomar um duche.
Quando saiu do duche, ainda sem se enxugar, foi até à mesa da cozinha e pegou no envelope. Hesitou antes de abrir. A aura de mistério de um envelope sem remetente deu-lhe vontade de o manter assim, incógnito, desconhecido, misterioso, indecifrado. Abriu o envelope e tirou lá de dentro um pequeno pedaço de papel. Parecia ser um bocado de um toalhete de restaurante, rasgado à pressa. Manuscrito e nervoso, o texto dizia assim:

A única imagem que guardo nossa é de ti a foder-me por trás, numa cama, numa casa qualquer. Não era a tua. E quando te vieste, deitaste-te cansado mas a sorrir. E eu acabei em cima de ti, a foder-te. Eu não queria parar. Foi a melhor noite de sexo que tive. Não consigo deixar de querer foder-te. E, se começar, não sei se vou querer parar.”

Tinha uma pequena nódoa de vinho no canto inferior direito que manchava a palavra “querer”. Deixou o papel em cima da mesa-de-cabeceira, secou-se, vestiu-se, calçou-se. Não reconhecia a caligrafia. Não se lembrava de tal episódio. Não lhe ocorria qualquer ex-namorada ou affair que vivesse em França. Restava a possibilidade de alguma one night stand esquecida nos confins da memória. Porém, havia qualquer coisa na mensagem que sugeria sentimentos. E as one night stands não suscitam sentimentos, pensou.
Era sexta-feira. Passou o dia a embrenhar-se na intrigante história de uma carta sem remetente com uma mensagem enigmática. Questionou-se várias vezes sobre quem poderia ser essa ninfomaníaca carregadinha de desejos. O pensamento excitou-o. Excitou-o muito. Percorreu, de memória, todo o seu arquivo de mulheres. Não tinham sido assim tantas. Pelas suas contas, catorze, no total. Sem contar com putas – apenas mulheres sem cachet. Agora, mais velho, solteiro, sem namorada, por vezes sentia necessidades. E a masturbação não satisfaz tudo. Às vezes é preciso um corpo, um contorno. Um olhar, um odor, uma respiração ofegante para além da sua própria.
Teve pressa de chegar a casa e nem sentiu fome. Fechou-se na casa de banho. Excitado como estava com toda esta ideia, não demorou muito até suspirar de prazer. Imaginou a autora da carta a escrevê-la numa esplanada parisiense, ao sol, com um vestido leve, decotado, as pernas cruzadas de maneira insinuante. Lisas, bronzeadas, apetitosas. Imaginava-a de baton vermelho vivo e cabelos castanhos levemente ondulados, macios e pesados caindo-lhe pelos ombros bem desenhados, um deles descoberto revelando uma alça de soutien. Imaginava-a chamando-se Sara ou Luísa ou Inês ou Isabel escrevendo naquele canto de toalhete à pressa enquanto um namorado qualquer chamado Jean Piérre foi lavar as mãos. E ela, vendo-o levantar-se, lembrou-se dessa noite gloriosa de que ele, agora, não tinha a menor recordação. E então imaginou também essa noite com uma qualquer Sónia ou Patrícia, numa casa que não era sua, numa cama que não era sua, a ser praticamente abusado por uma mulher ciosa, quase indecente, ávida, cheia de apetite e de energia. E imaginava-se a si mesmo sorrindo entre as pernas desse corpo licencioso e moreno, rodeado por coxas sedosas, envolto no aroma da carne e dos prazeres que a carne dá.
Imaginando tudo, voltou à casa de banho e voltou a não se demorar. Continuava sem sentir fome e relia insistentemente o bilhete. “Eu não queria parar” essa frase excitava-o como nenhuma outra até então. “E eu acabei em cima de ti, a foder-te”. Terceira vez. Demorou um pouco mais. Acabou por deitar-se, cansado. Não jantou e adormeceu.
No dia seguinte levantou-se tarde. Sentiu-se dorido. Passou o dia em casa. O bilhete ocupava todos os seus pensamentos. E essa mulher que não deixou memória não lhe deu tréguas à imaginação. E essa noite esquecida não deixou em paz o seu corpo que, sempre excitado, se foi consumindo e espremendo em gestos cada vez mais maquinais. Não saiu de casa durante todo o fim-de-semana. Não chegou sequer a vestir-se, a barbear-se ou a tomar banho. Bebeu café e Coca-Cola. Comeu pizzas que mandou vir. Estava obcecado.
Segunda-feira amanheceu cruel e nublada. O cansaço e as dores no corpo tornaram o seu despertar particularmente penoso. Foi á casa de banho. Tentou mijar e doeu-lhe muito. Parecia entupido. O carteiro passou e deixou-lhe coisas. Não lavou as mãos, sequer. Saltou porta fora e revolveu a caixa de correio. Não quis saber do jornal ou dos flyers do reiki. Procurou um envelope sem remetente. E encontrou.
Sem jeito, rasgou a abertura e um pouco do papel. Desta vez era papel de carta e a letra não era apressada. A mensagem era curta. Dizia só assim:

Aposto que já bateste umas vinte à custa da outra carta, meu tarado do caralho. Deixa-te disso, palerma, estava no gozo contigo. Só queria avisar que chego quarta-feira. Dá para ficar em tua casa até ao fim-de-semana? Grande abraço, João”.

Tenho de ir a Trás-os-Montes, que ainda não conheço

Estávamos a beber uma cerveja na rua. As noites de calor não dão vontade de ir para a cama. A cerveja sabe melhor. Conversávamos.
Já não somos miúdos. Já não temos, sequer, vinte anos. Olhamos para as coisas sem esperar novidades. Há pouco no mundo para nos deslumbrar. A merda da maturidade e da consciência tiram a piada a tudo. Fumar um cigarro deixa de ser um prazer. Controlar os cigarros passa a ser uma preocupação. Deitar tarde continua a ser bom, mas pesa-nos na consciência. E no corpo, que anteontem era de borracha, à prova de noite, e que agora exige descanso. Tenho um despertador e ligo-lhe mesmo, dou-lhe importância. Odeio o sentido de responsabilidade, aborrece-me. E agora, transgredir soa sempre a pecado. E eu não sou um pecador, foda-se!, sou só um gajo normal!
Tenho trinta e um anos – trinta e um anos, pá! – e ando aqui nisto, com horários e regras e contas para pagar e prazos para cumprir e a fazer planos, trabalho há treze anos, foda-se. Tenho trinta e um anos e olho para trás, não consigo contar os dias mas era capaz de jurar que ainda a semana passada tinha vinte e dois. Os meus três anos na escola secundária tiveram mais dias do que a década de 2000, era capaz de apostar o mindinho da mão direita. Renderam-me mais as férias da Páscoa de 1989 do que a Primavera de 2006 – da qual não guardo qualquer memória, acho eu, elas parecem-me todas iguais, a mesma Primavera a repetir-se, indistinta, desde 2001, mais ou menos.
Passaram trinta e um anos desde que nasci e o que é que eu andei aqui a fazer? Sim, bebemos umas cervejas à noite. Jantámos bem, experimentámos bons vinhos. Às vezes passeámos, mergulhámos nas águas tépidas do Algarve. Há uma altura ou outra em que um gajo é extravagante e vai passear para as montanhas, encher os pulmões. Ver os pássaros e não sei quê. Javalis. Tomar banho em riachos gelados. Comer coisas rústicas e ouvir só aqueles ruídos do mato a que as pessoas urbanizadas chamam “silêncio”, mas é silêncio a pôrra é que é silêncio – o silêncio não se ouve. Os grilos a fazer barulho é silêncio, por acaso?
Tenho trinta e um anos e nunca bronzeei este corpinho em Copacabana. Nunca fiz o reveillon em Times Square. Nunca caminhei em Novosibirsk pelas margens do Ob. Não tirei a carta, não fiz filhos. Acho que nem plantei árvores e escrevo coisas mas duvido que sejam livros. Sim, andámos por aí a fazer música, a dar concertos. A ver jogos de bola e pores do sol em sítios bonitos. A falar com pessoas.
Não estou a dizer que esta vida é uma merda e que é tudo infelicidade e que está tudo por conseguir e por fazer. Eu estou a dizer que tenho trinta e um anos e que não sei como isto foi acontecer, esta treta de um gajo dar por si e pumba, olha os vintes já se foram. Não me estou a lamentar. A culpa é da conversa de ontem á noite. A culpa é do calor. A culpa é da cerveja à porta do Manel.
Tenho trinta e um anos e dezoito deles foram passados em carruagens e estações de metro. Outros vinte e cinco foi a ver séries na televisão. Dormi sete ou oito. Trabalhei pelo menos quarenta e nove. Ando a gerir mal o meu tempo. Depois parece que uma pessoa não fez nada. Eu queria ter feito interrails quando tinha vinte e um anos, mas quando me lembrei disso já tinha vinte e nove. E queria ter sido um prodígio do rock aos dezanove, mas tinha vinte e cinco quando formei a banda. Queria ter ido ao Egipto aos vinte e sete mas tive medo e não tinha dinheiro. Resta-me a parte dos livros. Para os livros podemos ser velhos, não tem problema. E dos filhos. Ainda tenho tempo para isso. Mas não me posso descuidar com as horas. Tenho trinta e um anos e nunca fui à Austrália nem à África do Sul nem à Suécia. A Paris não quero ir.

terça-feira, abril 12, 2011

Cogumelos!

Eles iam a descer a rua e discutiam muito. Dois homens e uma mulher. Ela tinha uma garrafa de plástico na mão. Uma garrafa de Coca-Cola. Mas ia cheia de vinho branco ou de qualquer coisa parecida. Estavam bêbados. Um dos homens acusava o outro de lhe ter roubado uma das sardinhas. Tinham parado num arraial e comeram sardinhas no pão. O mais pequeno acusava “era a última… e tu é que a comeste!” e o mais encorpado só dizia “cala-te, ‘tás bêbado…” e era um facto, ele estava bêbado. Estavam os dois.
Estava uma noite quente e a mulher bebia pelo gargalo. Ela tinha muito mau aspecto. Tinha uma cara estragada. As feições enfiavam-se pelo rosto adentro e sugavam-lhe os contornos originais. Os lábios eram finos e tinham feridas. Vestia pouca roupa, andrajos sem critério, um conjunto inestético de sobras. A noite estava mesmo quente. E ela disse “foda-se, parem com isso” e deu mais um gole na bebida.
Eu desci as escadas. Vim deixar o saco do lixo na rua. Eles ainda caminhavam, trôpegos e lentos. Barulhentos. Estavam à minha frente, a poucos passos de distância. Olhei-os e eles viram-me. Acalmaram-se um pouco. Julgo que tentavam focar-me, descobrir-me a silhueta, definir mentalmente as minhas formas e dimensões. “Quem são estes?” disse o mais corpulento. Entrei no prédio e fechei a porta atrás de mim.
Fui para a varanda e acendi um cigarro. Eles estavam lá em baixo. Ainda estavam a processar a informação relativa à minha presença no mundo - o momento em que o acaso me fez cruzar com o seu grupo desordenado. O mais pequeno avançou em direcção ao meu saco do lixo. Deu-lhe um pontapé. O saco rebentou. Havia lixo espalhado pela calçada – ossos de costeletas, pacotes de natas, restos de salada de tomate, restos de arroz, latas de atum e de cogumelos. A mulher disse “esse filho da puta não faz reciclagem”. Havia também espinhas e cabeças de sardinhas. O maior disse “podes comer essas ah ah ah” deu uma grande gargalhada, mas sem gosto. Penso que só tentava provocar o mais pequeno. E depois acrescentou “também era reciclagem” e então riu-se de novo, agora com prazer. E a mulher riu-se também. Tinha poucos dentes. E estava a fumar. O mais pequeno não riu e pediu um cigarro à mulher “dá-me um cigarro” e ela “foda-se, só me chulas” e o maior disse “paneleiro de merda”.
Continuei a fumar o meu cigarro. Agora o grupo analisava o meu lixo. Cambaleavam trazendo pequenos pedaços, pequenos dejectos até à luz do candeeiro de rua. Observavam com minúcia guardanapos usados, um copo partido, uma embalagem de manteiga Mimosa, pacotes de gelatina, duas cebolas podres. “C’stina…” disse o maior. “ó C’stina, porra… tu só dizes caralhadas a toda a hora… nem pareces uma gaja” e continuou a remexer. Abria com as mãos carcaças rijas, pão com cinco dias, à procura de qualquer coisa surpreendente. “Vai-te foder, meu cabrão de merda” disse Cristina. “Isso é mentira”. E era, até ao momento. O mais pequeno perguntou alto “o que é isto?” e ergueu o objecto amarfanhado para a luz. Era uma prata de chocolate. Cheirou. Lambeu. “É chocolate” concluiu.
Um deles olhou então para cima. Viu-me. Processou a informação com toda a paciência. E eu fumava com calma. “Dá-me um cigarro” disse. E eu não respondi. “Paneleiro de merda… mete os cigarros no cu!”. Atirei-lhe com a beata ainda acesa “foda-se!” gritou enquanto tentava desviar-se. Acertei na mulher. Cristina não deu por nada. Esgravatava o lixo e encontrou uma lata de cogumelos com dois ou três pequenos cogumelos laminados lá dentro e disse “olha cogumelos” e o seu cabelo começou a arder. O maior olhou-a e começou a rir. O mais pequeno tentava indignar-se comigo. Focava-me fechando um dos olhos “eu sei quem tu és, cabrão de merda… eu apanho-te” e Cristina ardia. Eu disse “cala essa boca, vai dormir” e fechei a janela.

sexta-feira, março 04, 2011

O meu amigo Neil

Chegamos a certa altura da noite, depois de horas a fio a falar de música, após vários copos de vinho tinto, umas quantas minis e saladinhas de polvo e tostas de atum, a conversa resvala invariavelmente para um tema: a minha relação com a música do Neil Young. A mesa grande da Bela leva cerca de muitas pessoas, dependendo da hora a que chegamos e de quem está comigo. Mas é para cima de seis ou de oito e às vezes mais. E toda a gente gosta sempre do Neil Young e toda a gente o respeita imenso. E eu, na minha inocência, uma vez tive a ideia infeliz e descuidada de dizer que “não tenho pachorra para esse gajo” e originei uma espécie de motim. A minha cruz é, desde então, ser o alvo de toda a mesa sempre que as pessoas deixam de ter memória das conversas que já tivemos e a raiva lhes vem de novo ao de cima.
Portanto, e uma vez mais, lá estava eu, no centro de todos os ódios.
-Mas que porra, qual é o mal de eu não gostar do que o homem faz? É assim tão importante? Ele nem sabe que eu existo! Ele tem milhões de outros fãs…
-Mas tu sabes distinguir o Neil Young do Neil Diamond? Ah ah ah… - e riam todos; eles não se lembravam, dada a hora da noite, mas essa piada já tinha sido feita de todas as vezes anteriores.
-Vai-te foder…
-O Diego não sabe … Nem sabe que o gajo era guitarrista de Buffalo Springfield…
-Aqui vamos nós… .l. Vocês são do caralho, pá. Acho o gajo chato, meu. Deslarguem-me da braguilha!
-Pá e no Harvest, pá? E no Harvest? Só conheces o gajo desde os Pearl Jam… Vai ouvir o Harvest, totó…
-Read my lips: .l.
-‘Tão e sabes de onde é que vem a Sweet Home Alabama, dos Lynyrd Skynyrd? Ah, pois é… não sabes, boy, não sabes…
-Já me contaste isso pelo menos dez vezes…
A conversa continuava. Eles bombardeavam-me, provocavam-me; eu bebia minis, comia batatas fritas Saloinha e distribuía piretes de modo mais ou menos aleatório. Já não lhes levo a mal. Até sorrio e acho graça. São como crianças musicais e eu sou o seu brinquedo preferido.
O Francisco entrou com o seu longo sobretudo e um sorriso ainda mais longo. Notava-se que estava feliz e em pulgas por qualquer motivo. Por trás dele, um homem de camisa aos quadrados, calças de ganga e chapéu de cowboy. Patilhas longas. Cabelos grisalhos, quase pelos ombros. De rosto, uma mistura entre David Carradine e Billy Bob Thorton. Mas em feio.
O Francisco aproximou-se da mesa e fez sinal ao tipo.
-Neil, come here please. There’s someone I’d like you to meet.
O homem chegou-se. Fez-se silêncio. Pousei a minha cerveja e levantei ligeiramente o sobrolho.
-Só podes ‘tar a gozar…
-Neil, this is the people… and that one over there is Diego, the guy I told you about.
-Hy people! – e, olhando para mim, rindo e estendendo-me a mão, enquanto com a esquerda tirava o chapéu, como um cavalheiro perante uma senhora – And… hello Diego. It’s very nice to meet you.
-Tu só podes ‘tar a gozar comigo, caralho! – isto, dizia eu ao Francisco, enquanto cumprimentava o velhote.
Sentaram-se. Passámos a ser uns onze ou catorze à mesa. O Francisco chamou a Bela para pedir bebida.
-What’chyou gonna have, Neil?
-Ehrm… do you got some salsaparila?
A Bela também levantou o sobrolho, interrogativa.
-Pergunta se tem salsaparrilha – traduziu o Francisco.
-Eu percebi! Só estou incrédula… ‘Tá a gozar?! We got wines, mister! Wine. And beer. Choose.
-Oh… then arhhhm… I guess I’ll have a beer.
-Sagres?
-No… - olhou para mim e sorriu, com gozo – I’m from up North, you know. I’ll have a… Super Bock.
Não me conformava. Não me conformava!
-Mas que puta de ideia, Francisco… Mas que puta de i-d-e-i-a! Bela, traga-me mais uma, fáxavor. Daquelas minis das gordinhas, se ainda houver. Sagres, claro!
-Eu sei, menino Diego, eu sei…
E então ele virou-se para mim. Ia claramente dizer qualquer coisa. Mas, antes de falar, fez questão de me olhar bem nos olhos. Como se me estudasse. Como se me quisesse intimidar.
-So… I heard you’re a musician too…
-Ya.
Riu-se. Eu continuei a comer o milho tostado e os amendoins salgados. Toda a gente estava calada. Toda a gente queria ouvir. Ele sorriu antes de recomeçar. Levou um amendoim à boca e continuou
-So… and I heard you don’t like me…
Olhei para o Francisco com alguma raiva. Olhei para os restantes. Todos sorriam como quem diz “bem feito!”.
-How could I “not like you”?... I don’t even know you. Met three seconds ago.
Ele sorriu de novo.
-You don’t like my songs.
-Well… you might say that. Though probably it’s a bit exaggerated… I just find them… you know… boring.
-Oh… that’s a lot fuckin’ better… Thank you! Thank you, Diego…
-I didn’t mean to offend you, ok? – interrompeu-me, brusco.
-You ain’t much of a songwriter yourself, if I may say… Neither a singer. And you’re for sure a fuckin’ lousy guitar player – maybe you should practice in Guitar Hero.
Disse isto e olhou para o Francisco e para todos os outros e toda a gente riu bastante. E eu olhei para ele e para todos os outros e não sabia o que havia de dizer.
-Me it’s more about… it’s the lyrics, man. You should learn Portuguese. My thing is the lyrics. Better than yours, that’s for sure… You should write in Chinese, at least people wouldn’t understand it…
Acho que neste ponto, quando acabei de dizer isto, houve quem parasse de respirar.
-Aqui tem a Sagres, menino Diego. And your Super Bock.
-Obrigado, Bela. Pessoal, está a ser um bocadinho muito bom. Mas vou até à Típica. A ver se o Paulo mete uns clássicos do rock. É o que me apetece ouvir.
Já me levantava e vestia o casaco. Felizmente, as minis não têm retorno. Dão para levar para a rua. E diz ele para o Francisco
-Where’s he going? What did he say?
-He’s going up there to another bar… he wants to listen to some rock n’ roll classics.
-Well, you little motherfucker… I’M a funckin’ rock n’ roll classic! ME! I’m here!
E virou-se para o Márcio. Aparentemente, o Márcio também estava combinado. Tinha levado a guitarra. Passou-lha e ele já se preparava para tocar.
-Também tu, Márcio?
Confesso que me senti magoado. Todos contra mim; ninguém para me apoiar. Decidi sair na mesma. Eu estava visivelmente agastado, claro. Até porque toda a gente sorria. De alguma forma, todos se sentiam vitoriosos. Vingados.
-I’m sorry, I’m not gonna listen to you…
-Please, stay. I’d like you to stay.
-I’m sorry, Mr. Young. I think we won’t manage to be friends, ever…
-Oh, no Diego… I AAMMM sorry… I don’t want to be friends with you. And for sure I didn’t mean to upset you!
E riu-se. E todos se riram. Riram com vontade. Senti-me gozado. Saí. Saí com pressa, como se fugisse. Nem paguei, pago depois. Pago logo, pago amanhã. Pago quando o Neil Young não estiver ali a assombrar-me. Acelerei o passo e subi a rua. Queria chegar à Típica o mais rapidamente possível. Quando estava a chegar, alguém gritou
-Hey, Die-go! Hy… wait!
Oh não. Era ele. E vinha em direcção a mim, num trote ligeiro, como quem tem alguma pressa. Parei e esperei por ele. Chegou e pôs-me a mão no ombro.
-Look… we could be friends.
-…
-Seriously. I was just pretending back there. Eu até falo português, dude. Eles é que não sabem. Coitados… não lhes quis destruir a fantasia.
Fiquei confuso. Ele continuou.
-Look, eu forcei a tua saída… to tell you the truth, estou tão farto das minhas músicas como tu. Já não me posso ouvir, man! Really! Queria tudo menos ter de tocar outra vez that fuckin’ shit do rockin in a free world e outras que tais, dude. Eu só queria vir contigo. May I?
-Well… sure. I guess.
E fomos. Bebemos cervejas. Ele manteve-se fiel à Super Bock. E eu à Sagres. E conversámos. Conversámos muito. Ele é boa pessoa. Atento, bem-disposto, mordaz. Tem sentido de humor. À porta, enquanto fumávamos, disse
-Still, I was telling the truth about you’re songs… you suck, dude.
-It’s songs for the ladies, baby. You’re not a lady. Bitch…
E rimos muito e brindámos.

terça-feira, março 01, 2011

O cacto

O meu plano era francamente simples: chegado ao jardim de Santa Clara, sentava-me na relva, sacava da minha pá de jardineiro – na verdade, era uma pá de plástico que eu tinha comprado num bazar chinês, daquelas com que as crianças brincam na praia -, escavava um pouco, guardava a terra num saco plástico, enfiava o saco na mochila, metia a mochila às costas; a seguir, pegava em mim e bebia um café no quiosque e depois seguia a minha vida, regressando a casa. Sem dar nas vistas.
A simplicidade de certos planos é absolutamente subestimada por determinadas pessoas. Nomeadamente, pessoas agentes da autoridade. Uma dessas pessoas aproximou-se de mim enquanto eu, pueril, escavava com esforço o meu buraquinho para de lá extrair uns míseros 300 ou 400 gramas de húmus, terra fértil constantemente presenteada pelos cães da vizinhança e pelas folhas que caem das árvores em certas estações do ano, às vezes. Cheirava a xixi. “Bom dia” e eu ergui, surpreendido, o olhar e respondi “bom dia” com humildade e sem qualquer intenção “o que é que o senhor pensa que está a fazer?”. Parei de escavar. Na verdade, fui apanhado de surpresa. Hesitei um pouco “estava aqui a tirar um bocadinho de terra…eu…”
- Mas o senhor sabe que esta terra é propriedade pública…
- Isso é… uma pergunta?
- Não senhor, é uma afirmação. Sabe, não sabe?
- Julgo que sim… mas olhe, é só um bocadinho (e levantei o saco, para provar que não estava a ser sôfrego nem, tão pouco, era minha intenção empobrecer a propriedade pública).
- Pois então, se o senhor sabe, devia saber que não é permitido subtrair terra do espaço público…
- Mas é proibido?
- Não é permitido.
- E adicionar?
- Desculpe?!
- Adicionar terra ao espaço público. É permitido?
- (Coçando a cabeça, por debaixo do boné) Ora… eu estou em crer que proibido não é. A não ser que estejamos a falar de uma grande quantidade de entulho, não é? – acrescentou bem-disposto, com pronúncia beirã, sorrindo quase a rir em seguida. – Agora, subtrair é que não pode. Propriedade pública é a propriedade de todos nós… ora não é?
- Mas, senhor agente, este bocadinho que aqui levo deve ser menos do que a parte que me caberia se a gente dividisse a propriedade pública por todos. (Levantei novamente o saco, mostrando o meu pequeno quinhão).
- E, vamos lá a saber, para que é que o senhor quer isso?
- Sabe, é que eu comprei um cacto, um daqueles minúsculos, no supermercado. E aquilo vem num vaso que é muito pequenino, em plástico, quase nem terra tem. E eu desconfio que se eu não mudo o cacto de vaso, nem o bicho me cresce, nem conseguirá sobreviver, se calhar. Aquilo é tão pequenino, o vaso… Pouco mais que uma xícara de café.
- Um cacto… hum…
- E eu entretanto lembrei-me que podia mudá-lo para um recipiente novo que eu inventei. Peguei numa daquelas embalagens de sumo de laranja de litro e meio, também do supermercado, e cortei-a sensivelmente ao meio.
- Sensivelmente?
- Sim, para não magoar… Depois fiz-lhe um furinho cá em baixo
- … sensivelmente?...
- Pois claro… que é para a água escoar. Que eu vi, lembro-me que os vasos lá em casa da minha avó, quando eu era miúdo, tinham todos um buraquinho. E eu quero fazer as coisas com perfeição. Com rigor.
- É verdade. Buraquinho. Confere.
- E agora tenho tudo a postos para fazer a trasladação do pequeno cacto. Porém, a terra que vinha dentro do tal vaso do tamanho de uma xícara mal chega para tapar o buraquinho da metade do pacote de sumo de laranja de meio litro do supermercado.
- Pois, imagino…
- E então lembrei-me “por que não subtrair um pouco de húmus do jardim de Santa Clara?”.
- Estou a ver…
- E cá estou. E agora o senhor diz-me que é proibido…
- … não é permitido…
- … não é permitido eu levar daqui um bocadinho de terra.
O agente fez uma pausa. Devia ter os seus cinquenta anos, ou perto. Não era gordo, mas era robusto. De média estatura, a puxar para o alto. Tinha ar de homem de família. Muito português, indubitavelmente português: entre o moreno e o rosado, com o rosto invadido pela barba cerrada que o escurecia, apesar de desfeita seguramente nessa mesma manhã.
- Como é que se chama o cacto?
O meu cacto não tinha nome. Por momentos, o meu cérebro enregelou: ali estava, diante de mim, a grande oportunidade de conseguir a minha pequena porção de terra pública que salvasse o meu pequeno cacto. Bastava-me escolher agora um nome simpático para o senhor agente. Algo que o tocasse.
- Marília.
Sem pudor, tentei acertar-lhe no nome da mulher.
- Marília?!
- Sim… é uma cacta.
Os meus olhos reluziam de esperança.
- Leve lá daqui isso e… cumprimentos à Marília.
Piscou o olho, sorriu e virou costas.
- Gostou do nome? - perguntei, sorridente, ainda sentado no chão. Mas acho que ele não me ouviu.

sexta-feira, fevereiro 11, 2011

Entrevista de trabalho

(Uma pequena homenagem - é tudo o que posso fazer, para já...)

Cheguei e sentei-me, à espera. Entretanto, chegou uma senhora que aposto que tem 52 anos ou quase, com óculos, um casaco de malha azul escuro e um vestido fora de estação e muito fora de moda, cheiinha, sem elegância e voz demasiado fina “senhor Diego?” e eu “sim, sou eu”. “Bom dia, faça o favor”, ajeitou os óculos demasiado grandes e encaminhou-me para a porta do gabinete. A senhora tinha um ar de adjunta da secretária da administrativa do assessor do braço direito do subchefe do gabinete de apoio à vice-presidência da antecâmara da subintendência do auxílio às ideias raras de um administrador desconhecido sem qualquer voto na matéria, fosse a matéria qual fosse. Senti-me subestimado.
Sentei-me. “Falta-lhe aqui um portfólio”. “Ah, sim… mas eu mandei em formato digital”. “O que é isso, formato digital? Rectangular?”. “Não… bom, mandei por e-mail. É que, sabe, não é barato fazer uma impressão de qualidade de um conjunto de trabalhos com mais de seis anos… mesmo que fosse uma selecção de 7 ou 8 retratos… enfim, pensei que, sendo a entrevista para ‘serviços administrativos e fotografias tipo passe’ se dispensasse o portfólio”. Olhou-me, pesando na balança da sua sabedoria se a minha justificação faria sentido. “Bom, eu falo com o doutor”. Agradeci. “Aqui tem a lista das condições. Leia com atenção e eu já volto”.
Dizia assim: estágio com remuneração de 350 euros mensais; de segunda-feira a sábado, das 8h30 às 16h30, com intervalo de uma hora para almoço. Li com atenção cinco vezes, fazendo tempo até a senhora, com todo o ar de se chamar “dona Luísa”, voltar. “Já leu?”. “Li sim…” “E então?”
Hesitei. Escolhendo entre a honestidade e um futuro precário de prazo curto num serviço administrativo, optei pela segunda.
“Bom, quer dizer… não é muito bem pago – sorri inocentemente -… 350 euros, tantas horas por semana…” Dona Luísa olhou por cima do aro dos próprios óculos e eu li, juro que li, nos seus lábios imóveis a expressão “os jovens de agora”. Porém, foi diferente aquilo que disse “olhe, filho, é melhor que o desemprego…” Olhámo-nos, Dona Luísa com alguma desconfiança; eu com alguma ira e outro tanto de desconforto. “Bom, depois contactamo-lo, ‘tá bem? Tenha um bom dia”.
Saí do gabinete. Enquanto descia as escadas, algo em mim, um impulso difícil de explicar, obrigou-me a voltar atrás. Entrei no gabinete.
-Dona Luísa!
-Desculpe?
-Dona Luísa, ainda não acabámos… é que tive uma ideia.
-O meu nome é Conceição, se faz favor.
-Dona Luísa, uma ideia brilhante. Eu sou capaz de salvar esta empresa! Imagine, em vez de pagarem 350 euros aos seus estagiários e mesmo aos seus empregados, vamos remodelar isto tudo. Está a ver a ideia?
-Ãh?!
-Repare, primeiro despedíamos toda a gente.
-O quê?!
-Sim. Iam ter indemnizações e subsídios de desemprego. É melhor estar desempregado com subsídio e indemnização do que estar simplesmente desempregado, sem nada. É ou não é?
-Ehrm…
-Pronto, isto era o primeiro passo. Depois, contratávamos dezenas, centenas de pessoas para fazer todos os trabalhos. E, em vez de lhes pagarmos, dávamos-lhes… ora, deixe cá ver… olhe um pãozinho com manteiga, um pacote de leite com chocolate e uma peça de fruta a cada um. Todos os dias!
-Desculpe?
-Sim. Mas não precisava de ser kiwi nem nada disso. Maçãs, laranjas do Algarve, coisas assim baratas. Nada de entrar em loucuras!... E o pão era carcaça e o leite era do Lidl. Depois, à sexta-feira, escolhia-se o empregado da semana e dávamos-lhe um Twix! Imagine, um Twix. Uma pessoa num dia está no desemprego e, no dia seguinte, tcharam, sem mais nem menos, tem uma refeição diária e a possibilidade de ganhar um Twix à sexta-feira! Já imaginou? Há que incentivar os trabalhadores, sobretudo os jovens, que não querem fazer nenhum. Os jovens gostam de Twix, isso eu sei.
-Enlouqueceu…
-E depois, para as senhoras mais velhas, como a Dona Luísa, que estivessem dispostas a abdicar do salário e a permanecer na empresa, para que a perda não fosse tão pesada e triste, atribuir-lhes-íamos uma gelatina diária, também!
-Oh!... (um oh indignado, dos tornozelos à nuca!)
-E todos os dias diferente: à segunda era morango, à terça era banana, à quarta era laranja, à quinta era… era morango outra vez, à sexta era ananás e ao sábado, vá, era meloa! Meloa, imagine só!
-Eu?! Abdicar do meu… mas… pão com mant…
-Calma Dona Luísa… Ao menos tinha o seu empregozinho. Melhor que nada…

segunda-feira, dezembro 06, 2010

A roupa da vizinha

Três da manhã. A cozinha da minha vizinha do terceiro andar fica precisamente debaixo do meu quarto. Aparentemente, a madrugada é o período de eleição da minha vizinha para lavar roupa na máquina. Num prédio antigo, com chão e tectos de madeira, isto significa que, ao invés de dormir, dou voltas na cama, vociferando internamente “a grande vaca!... outra vez…”.
A minha vizinha de baixo é peculiar. Ligar a máquina de lavar roupa às três da manhã é, para ela, natural, normal e legítimo. Já, por exemplo, tocar viola num sábado à noite, durante um jantar de amigos, em minha casa – digamos, às dez e meia da noite – é susceptível de merecer três ou quatro vassouradas no tecto (dela; debaixo do meu soalho, portanto).
Não saí da cama. Faltou-me vontade. Intenção não me faltou, a sério. Mas é Dezembro, estão dois graus Celsius e a minha cama é de um conforto difícil de descrever. Porém, prometi a mim mesmo que “da próxima vez não perdoo, cadela anti-musical, maldita dona de casa noctívaga!”. Minutos depois, percebi que jamais poderia cumprir a minha promessa.

***

A indignação, tal como o profundo incómodo, não são luxos exclusivamente meus. No segundo andar vive outra pessoa.
Ouvi passos na escada. Pesados, fortes, determinados. Numas escadas antigas em madeira de idade avançada, uma escuta atenta à subida de alguém permite-nos determinar o seu estado de nervos. Esta pessoa estava nervosa. De uma maneira negativa. Não propriamente furiosa. Mas decididamente chateada.
Parou no terceiro andar. Bateu quatro vezes na porta. A palavra bater não é adequada. Antes, agrediu a porta desferindo-lhe quatro golpes. A minha vizinha veio abrir.

***

O homem do segundo andar é um ser raro. Primeiro, porque raramente se o vê. Pessoalmente, troquei com ele meia-dúzia de palavras a propósito da fechadura da porta do prédio – velha demais; dificílima de se lhe introduzir a chave.
É uma pessoa bem-posta. Homem de meia-idade, veste-se condignamente. Diria até com algum capricho e uma discreta elegância.
O meu vizinho é um melómano. Tem bom gosto. Descendo as escadas à tarde ou ao início da noite, é frequente ouvir-se rock n’roll dos primórdios, fado de excelência, clássicos e raridades do jazz. A partir das dez da noite, nada se ouve – a vassoura da vizinha do terceiro andar tão facilmente bate no tecto quanto no chão.
Apesar de digno e composto, é claramente um homem de rastilho fácil. Disse-me, na primeira e única vez em que trocámos algumas palavras – a propósito da tal maldisposta fechadura – “esta merda já devia ter sido trocada! Ca pôrra de tortura… Não acha?! É inadmissível!...”. Eu concordei, embora com menor revolta. “Este Nivaldo é um chulo! Anda aqui, diz que faz isto, que faz aquilo… Não faz um cu! Parasita…”. De novo, concordei. Agora, com forçada veemência, mais para vincar a minha solidariedade do que para expressar a minha – pequena, irrisória, irrelevante – indignação.

***

Nivaldo também vive no terceiro andar. Partilha a casa com a lavadora da madrugada, a bruxa da vassoura, a ditadora do silêncio.
Nivaldo é um brasileiro baião dos seus cinquenta e poucos anos. Tem bigode e suíças. Usa um chapéu baião tradicional. Tem a pele muito queimada do sol e fala ininterruptamente, sendo que são raras as vezes que tem, de facto, alguma coisa para dizer.
É suposto Nivaldo ser uma espécie de contínuo do prédio, um zelador do seu bom estado e funcionamento, vá lá. Cada gota que cai do tecto, cada infiltração nas paredes, cada cano roto ou esgoto entupido – qualquer problema deverá ser-lhe comunicado. Da minha parte, foram várias as vezes em que o chamei. Na maioria das ocasiões, o problema era apenas um: pequenas obras na casa que Nivaldo e a sua equipa iniciaram mas que nunca se houveram dignado a dar-lhes desfecho. De todas as vezes, o castiço baião marcou comigo uma data para dar solução à questão. Chegada a data, Nivaldo veio, pôs-se ao corrente da situação, verificou, teve opinião e agendou nova data para, então sim, providenciar solução para estas minudências. Chegada a nova data, Nivaldo vinha, novamente de mãos vazias, avaliar a situação – ou, na sua expressão, “ver o que se passa”. E assim por diante, até uma espécie de infinito em que Nivaldo fazer, não fazia; mas que “via” com grande frequência e uma postura quase profissional.
Ninguém sabe se Nivaldo e a minha vizinha partilhavam mais do que apenas as paredes da casa.

***

Quando a porta do terceiro se abriu, uma voz irada e masculina disse, num grito controlado, “cabra de merda, então isto é que são horas de lavar a roupa?!”. Ouviram-se algumas palavras indistintas e movimentos no interior do apartamento. A porta fechou-se e soaram alguns baques surdos, juntamente com estranhos guinchos, primeiro, e gemidos frágeis, em seguida. Depois, nada mais se ouviu.
A estranheza fez-me sair da cama. Vesti o meu roupão de estilo Hugh Hefner, presente da minha avó, oriundo de um Natal remoto. Enfiei os meus inseparáveis chinelos do Benfica – estes, presente da minha mãe, uns chinelos almofadados, confortáveis e quentes, capazes de fazer qualquer Inverno parecer uma época aconchegante.
Desci e bati à porta. Sem agressividade, com as nozes dos dedos leves e precisas, delicadas mas sem hesitação. Encostei o ouvido à porta. Alguém se lhe dirigia arrastadamente.

***

Trazia um martelo de orelhas na mão direita – abrira-me a porta com a esquerda. Tinha salpicos de sangue no roupão branco, na cara e nas mãos. Disse-me “entre. Encontrei ali um disco de bossa-nova, vou pô-lo a tocar”. Assim fez. De seguida, serviu-se de whisky e perguntou-me se também queria. Acenei que sim, vagarosamente. Eu estava um pouco assustado.
No chão, no meio do chão da sala, a minha vizinha esvaía-se em sangue. A cara disforme, ferida e amassada; na cabeça, apresentava as feridas fundas de vários golpes convictos com o martelo. A vassoura estava caída a seu lado. O melómano, depois de me servir a bebida, apanhou-a e tocou com o cabo no peito da mulher. Não houve reacção. Sentámo-nos.

***

“Vem minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser”. Trauteávamos tranquilamente enquanto olhávamos para a rua. Eu fumava um cigarro, bebíamos whisky. O meu vizinho não fumava e abriu até uma janela porque, segundo ele, “não se fuma na casa desta mulher”.
“Não era melhor chamarmos uma ambulância?” perguntei eu. “Hum” encolheu os ombros “acho que já não vale a pena.
- Por que é que… fez isso? – e apontei para o martelo, vermelho do sangue.
- Enervei-me.
Mais tarde, explicou-me que “já eram muitos anos disto” e que, portanto, “já chegava”.
“Eu venho de uma terra onde a vida é dura, sabe? Uma pessoa tem de ter sempre qualquer coisa à mão para se defender. O martelo, por lá, pode ser a nossa salvação. Aqui, como lá, uma pessoa tem de saber defender-se, ora. Tenho ou não tenho razão?”.
Ele vem de Mafra.
“Temos lá ratos do tamanho de cabras – e esta cabra era muito rata -, que são ferozes como piranhas! E isso é agora. Na última idade do gelo, chegaram a atingir o porte de um mastodonte! Palavra. Ainda agora uns cientistas encontraram uma ratazana congelada, mais de 300 metros debaixo do chão. Mal cabia num camião da câmara. Estão a construir um parque de estacionamento subterrâneo e deram com aquilo”.
Felizmente, agora os bichos são mais pequenos e é possível alimentá-los com vacas, para que não saiam dos esgotos, disse. “Pelo Natal, é costume atirar-se-lhes uma zebra, um búfalo” divagava, justificando o porte e uso do martelo de orelhas. “Eles gostam do que é exótico, como qualquer um de nós”. Evidente.
Para além de ferozes, ágeis e possantes, “têm um gosto apurado. Uma vez por outra, atiramos um sem-abrigo. Para as ratazanas, é gourmet. E isso que os canibais dizem, de a carne branca ser menos saborosa… pff… tretas. Aqueles bichos devoram um branco como devoram um preto ou um chinês. Só com os ciganos é que são mais esquisitos – e ainda bem, porque não temos lá muitos”.

***

“E eu pensei: ora, se esta grande cadela só me azucrina, se não me deixa ouvir música e ainda me acorda às tantas da manhã para lavar cuecas e camisolas interiores, tenho que lhe dar um jeito”. E deu.
“Amanhã vou à terra e deixo-a no depósito dos ratos. Há destinos piores”.
Enquanto me punha ao corrente de todo o seu plano, encheu ambos os copos pela terceira vez. O disco terminara. Na poça, o sangue coalhava. “Só têm brasileiradas aqui…” Escolheu um de Chico Buarque, ao vivo. Ouviu-se alguém meter a chave à porta. Nivaldo entrou. Olhou-nos com algum espanto; observou o corpo da mulher no chão, com curiosidade. Por fim, disse “a máquina inda tá lavando? Pôxa, cara… odeio ter que estender essa pôrra às quatro da manhã. Ainda por cima com esse frio, tá vendo…”

quarta-feira, setembro 22, 2010

Crónica do fim de um dia

O meu plano era simples: sair cedo do escritório, apanhar o metro logo em Picoas para ganhar mais um período de espera e um viagem dedicadas às leituras. No Marquês, trocar de linha, esperar mais um pouco, abrir o livro, apanhar o metro, não fechar o livro. Continuar a ler até Santa Apolónia. Chegar a casa pelas nove da noite, comer uma pizza, ver televisão, fumar um cigarro a olhar para o Tejo. A simplicidade tranquila é algo que às vezes não saboreamos com dedicação suficiente.
Atrasei-me um pouco no trabalho. Mesmo assim, consegui sair antes das nove. Cumpri o programa: 40 metros a pé até à estação, abrir o livro, esperar enquanto leio; entrar no metro prosseguindo a leitura. Não se trata de uma leitura qualquer. Trata-se de Henry Miller e do seu extraordinário "Colosso de Maroussi" - não, não contém cenas sexuais. É um guia de espiritualidade humana disfarçada de relato de viagem, como qualquer relato de viagem que se preze. Mas este é o melhor que li até hoje. Miller andou pela Grécia quando estalou a Segunda Guerra Mundial. E absteve-se de se importar com o assunto porque vagueava pelas ilhas gregas a sorver o que a humanidade fizera e aproveitara de bom com aquilo que as divindades, sejam elas quais forem, se entretiveram a erigir para nós. Não lia jornais. Não tinha dinheiro. Conversava com amigos e deleitava-se com a existência, apenas isso.
O metro chegou ao Marquês e eu não saí do Corinto. Entre um e outro sítio, as histórias de Katsimbalis não me deixavam avançar rapidamente pelas páginas. De repente, uma travagem brusca. O metro parou e eu continuei. O rapaz à minha frente ouvia música muito má nos headphones. Na carruagem todos permaneceram em silêncio e agora as canções da Lady Gaga misturavam-se com a voz imaginária de Katsimbalis na cabeça imaginada de Henry Miller na minha cabeça. É impossível ler nestas condições. Começaram os primeiros suspiros impacientes. Mandei uma mensagem "que fixe, estou preso dentro do metro". Começaram os primeiros telefonemas, todos diziam o mesmo que a minha mensagem ou faziam ligeiras variações "vou chegar um pouco atrasado", "não sei o que se passa", "o metro parou, não anda, isto é inacreditável".
Passaram talvez quinze minutos. Havia burburinho lá ao fundo. Como vinha numa das últimas carruagens, limitava-me a ouvir o ruído longínquo. Era impossível perceber do que se tratava. O condutor falou pelo intercomunicador "senhores passageiros, isto é só um bocadinho... só um bocadinho". Lembrei-me de Chesterton a explicar o número infinito de possibilidades de eventos desde que uma pessoa entra numa carruagem de metro até que sai da estação de destino. Lembro-me perfeitamente dessa passagem em que ele, a dada altura, dizia algo do género "já reparou no milagre que é acontecer precisamente a possibilidade de que está à espera?". Pareceu-me irónico.
Devia ter passado já meia-hora, não consegui ler mais que umas três ou quatro linhas depois da travagem brusca. O metro não voltou a ser ligado. Um funcionário entrou pela nossa carruagem "meus senhores, vamos ter de sair um a um pelo túnel, está bem? Nós vamos ajudar, vamos sair com calma... um de cada vez, façam fila. Devagarinho". Alinhámo-nos, meio incrédulos, um pouco desorientados. Senti o peso da ignorância. Senti que agora era Kafka quem escrevia com os meus pensamentos. Senti-me claustrofóbico. Fiquei um pouco ansioso, um pouco impaciente. A fila avançava lentamente. Os passageiros, tal como eu, algo nervosos, uns telefonavam, outros mandavam mensagens. Eu respirava e tentava não pensar. Algumas pessoas trocavam palavras de ocasião que iam do "inacreditável" ao "já estou atrasado". Eu só queria chegar cedo a casa. Uma mulher, ainda nova, disse "foi alguém que se suicidou. Atirou-se à linha". Aparentemente, a informação incerta, vaga e dita em tom discreto não causou choque. Os telefonemas começaram a conter a informação "houve alguém que decidiu atirar-se para a linha" e pouco mais. Nem uma expressão de horror, tristeza ou compaixão. Apenas a constatação geral de que uma decisão imprudente daquelas, àquela hora, naquele sítio, viera causar a todos grande transtorno.
As pessoas iam saindo muito lentamente. Chegou a minha vez. Tínhamos de descer de costas uma escada alta até ao nível dos carris. Depois, em fila indiana, seguir até ao cais. Este exercício vezes muitas pessoas demorou algum tempo. No cais a polícia fez uma pequena e despreocupada barreira. O INEM já tinha chegado. As pessoas apressaram-se para a saída, de volta às suas vidas. Não consegui perceber se era um homem ou uma mulher, se era velho ou se era novo. Lembrei-me da Construção de Chico Buarque e de como esta pessoa, que deixara de ser pessoas ao atirar-se para debaixo do metro onde eu seguia, acabou por atrapalhar o trânsito.
Saí da estação, tentei levantar dinheiro, apanhar um taxi. Não consegui. Decidi caminhar até casa, cerca de meia-hora de caminho ou um pouco menos, se o passo for acelerado. Pensei que, se calhar, estas coisas acontecem por alguma razão. Devem dar-nos uma lição qualquer.
A pizza não era muito boa. Na verdade, não me soube bem. Na TV dava um filme medíocre e doía-me a cabeça. O final era previsível. Lembro-me de uma deixa da Meg Ryan, pouco antes do inevitável desfecho, que dizia algo do género "eu dantes pensava que as coisas aconteciam por alguma razão; agora sei que simplesmente acontecem, mais nada". Mais nada.

quinta-feira, agosto 19, 2010

Primeira crónica: da praia de Alvor

O biquíni mostrava as suas formas. Não, não. Não é isto. O biquíni, que é uma peça que são duas, não passa de um par de trapos curtos e estreitos. Não mostrando coisa alguma na maior parte dos casos, deixa muita coisa à mostra na generalidade das vezes. Por isso, o biquíni deixava ver as suas formas. Músculos secos, pele muito bronzeada. E eu pensei “grandes férias que estes pobres têm… no meu tempo, os pobres não passavam as férias na praia, ao sol; iam mas era fazer biscates”. Ela era decididamente pobre. E já tinha para lá de trinta. Andava perto dos quarenta, talvez. Muito morena. Morena antes do que o sol queima, aquilo era morenice de nascença. O cabelo não enganava, de tão preto que era. Ou então era pintado. Até tinha pinta de quem pinta o cabelo. Não era elegante, embora fosse magra. As ancas demasiado largas, os ombros normais, mas estreitos. O peito não se distinguia da barriga, e isso diz muito. Tinha uma criança, ainda dentro daquelas alcofas modernas que parecem ovos. Admiram-se que o desenvolvimento dos infantes seja cada vez mais lento, mas transportam-nos dentro de ovos até aos cinco anos. Já é muita sorte que não lhes nasçam penas em vez de pêlos, quando chega a puberdade. A criança chama-se Mário Rui “Mário Rui, queres leitinho?... Olha o leitinho para o meu bebé… quem é o meu bebé, quem é?” – é o Mário Rui. Não deixa de ser curioso que a tatuagem ao fundo das suas costas evoque precisamente o seu rebento. Em determinadas situações, pode causar constrangimento “Oh… Cátia… quem é este Mário Rui?” “Ah, é o meu bebé… está aqui no quarto ao lado”. Talvez o Mário Rui seja o Mário Rui, Jr., chamado assim por via da falta de imaginação de pai e mãe. Ainda assim, mantém-se a possibilidade de resultar em constrangimento desnecessário. Se bem que, com aquele tipo de letra, facilmente o Mário Rui se transforma num golfinho de traços tribais havaianos ou num cavalo alado. Ou… hum… também dava o símbolo da Rolls Royce.
Cátia, a morena sem grande graça, estendia a toalha de praia e esbanjava as tatuagens pelo areal de Alvor. Tinha cobras nos braços, um arabesco indecifrável do lado esquerdo do pescoço e, voilá, um golfinho de traços tribais havaianos por cima do tornozelo direito. Estava um fim de tarde esplendoroso, daqueles em que o sol é castanho e quente e fica lá ao fundo, a aquecer a maré. E eu imaginava Cátia barmaid, sócia-gerente de um bar-cervejaria com um nome infeliz, como “Snake Bar” ou assim. Um estabelecimento de beira de estrada nacional, com motoqueiros pontuais e moscas assíduas. Cátia a servir canecas de cerveja com manga cava e decote generoso, muito mais generoso do que a mãe natureza fora consigo na hora de lhe esboçar os seios. Cátia devia ter piercings: um na língua, um no queixo e outro no sobrolho esquerdo. Como não os tem, fica uma pessoa incompleta.