O papel da chumbada na afirmação da superioridade humana
Esta noite tive um sonho dengoso em que tu aparecias, como que surgida de um pop-up. E passeavas comigo fazendo uso de todos os ingredientes cliché de um filme romântico de domingo à tarde. Eu gosto dos filmes românticos de domingo à tarde, desde que sejam comédias cor-de-rosa. Gosto da história de amor que acaba bem e que tem graça. Prefiro as outras, as negras, que acabam mal e que têm malícia (dispenso bem as tragédias e as lágrimas pedinchadas), mas não ao domingo à tarde.
No sonho, desfilávamos com suavidade pela passerélle central – por que não dizê-lo: única – de Porto Côvo. E por ruas que, na verdade, não existem em Porto Côvo (algumas assemelhavam-se aos corredores ao ar livre da minha escola C + S, quando ainda era C + S: finos pilares de ferro pintados de vermelho que sustentavam os frágeis telhados de telhas de cimento que tinham a missão, sempre mas sempre frustrada, de nos abrigar da chuva). Faziamo-lo com ternura e à-vontade, como se a nossa vida tivesse sido sempre assim e aquele momento ali não fosse apenas uma meia-dúzia de fotogramas de um fim-de-semana ou de umas férias curtas.
Com a tarde mais amadurecida, sei que te convidei para tomar uns últimos raios de sol, agora que o Verão se esvai. Disseste que sim. No sonho estávamos sempre de acordo. Descemos à praia grande e estava vento e o céu encoberto. Foi então que sugeriste com a tua doçura “que tal se formos àquela pequenina?”. No sonho não me lembrei, o meu onirismo não é enciclopédico: esse areal minúsculo e cercado por escarpas cinzentas chama-se Praia dos Buizinhos. Concordei sem hesitar. Mas então aconteceu algo surpreendente: eu fui por um caminho de escarpas, junto ao mar. Tu deixaste-me ir mas não arriscaste o mesmo trilho. Subiste, foste pela calçada junto à estrada. E íamos falando, embora mais distantes. Quase a chegar à praia pequenina, deparei-me com quatro pescadores, sincronizados e alinhados, todos muito parecidos e vestidos daquilo a que chamamos, por toda a parte, um pescador. Preparavam-se para fazer os seus lançamentos, esticavam as canas atrás das costas, as chumbadas pendiam pesadas e balouçantes e os anzóis, lá mais à ponta, flutuavam com a aragem, ostentando inseguros minhocas que ainda se contorciam – e eu nem sei se as minhocas têm dores, mas não deve ser agradável ter um ferro curvo a atravessar-nos do esófago ao ânus. Pensei nas dores hipotéticas das minhocas e dei comigo a imaginar aquela ponta arpoada a espetar-se em mim. Ainda que não me atravessasse, haveria de fazer-me dores. Os pescadores ensaiaram o lançamento e o da ponta, aquele mais próximo de mim, fez o que eu temia: o fio passou demasiado perto e o anzol colheu-me dois dedos, os dois indicadores, e não sei agora explicar isto por palavras, precisava de papel e lápis para fazer um desenho e mostrar-te a figura absurda de uma pessoa que fica de mãos presas por ter sido colhida por um anzol que nem à água chegara. E logo nos dois indicadores, os dedos que indicam o caminho e mandam calar e pedem a conta. Pensei que fosse doloroso retirar o anzol da carne. Na vida real, aposto que é – e sei que o é, eu já cravei um debaixo da unha do polegar direito. Depois, tive de golpear a minha própria carne para que o anzol se desprendesse. É que, quando a ponta do anzol se enterra por completo, o pequeno arpão fica preso e só tem duas maneiras de ser retirado: ou puxando com força, o que o fará rasgar o tecido que atravessa; ou cortando o tecido para que o anzol se solte. No sonho, retirei o anzol recorrendo apenas à minha habilidade e a alguma paciência e tu não me ajudaste. Ou ajudaste? Neste momento do sonho concentrava-me apenas no anzol, nos peixes e nos pescadores. Os pescadores que quase me pescavam e que atiravam para longe as chumbadas na ponta dos fios. Estavam a pescar ao fundo. As chumbadas na pesca ao fundo são mais pesadas do que, por exemplo, os pequenos chumbos da pesca à bóia. Isto são coisas que aprendi com o povo e com o meu pai. Os nomes técnicos podem bem não ser estes. O papel da chumbada neste tipo de pesca é mesmo assentar no fundo do mar. É por isso que ela não está na ponta do fio. A ponta do fio é para o anzol. Os pescadores são muito engenhosos. Assim, a chumbada assenta no fundo, deixando que o anzol, com o seu isco espetado na ponta, fique mais solto e flutuante, ainda que preso. Imagina: a linha fica esticada até à chumabada; mas depois fica flexível, da chumbada até ao anzol, o que permite que o isco se bamboleie sensualmente diante de sargos, douradas, robalinhos ou das menos higiénicas taínhas (dá para pescar uma taínha enrolando um penso rápido em torno do anzol). A pesca desportiva serve, no fundo, para o ser humano afirmar a sua superioridade relativamente aos peixes. É uma espécie de tourada, mas com menos sangue, menos público e menos coragem. O pescador está ali para enganar o peixe acenando-lhe com uma minhoca ou outra coisa que possa apetecer à bicharada aquática. O peixe abocanha o isco e o pescador ri-se, satisfeito, pensando “enganei mais um!”. Estamos a falar de bichos que têm uma memória de escassos segundos e um Q.I. provavelmente impossível de medir, de tão diminuto que é. Mas uma pessoa não consegue deixar de sentir um certo orgulho por ser superior. De orgulhar-se da sua condição, vá. A gente deita o anzol com um isco; o peixe vai e morde e fica agarrado debaixo da língua ou por dentro da bochecha ou no céu da boca, e aquilo deve doer-lhe, mas um peixe não tem quatro patas, um peixe não é coisa que se leve a passear à rua, um peixe não faz muita falta vivo, a gente até já se habituou a ver os peixes encaixotados, congelados, abertos, arranjados, pendurados ou mesmo às fatias dentro de sacos da Pescanova. Um peixe serve para ser pescado e ser comido.
Depois, quando acordei, fiquei a pensar no sonho. Nisso de ser pescado. E de quem pesca o quê. Quem lança o isco na ponta do anzol. Eu gostava de ser pescador e, pessoalmente, acho que tens um ar bem suculento.
No sonho, desfilávamos com suavidade pela passerélle central – por que não dizê-lo: única – de Porto Côvo. E por ruas que, na verdade, não existem em Porto Côvo (algumas assemelhavam-se aos corredores ao ar livre da minha escola C + S, quando ainda era C + S: finos pilares de ferro pintados de vermelho que sustentavam os frágeis telhados de telhas de cimento que tinham a missão, sempre mas sempre frustrada, de nos abrigar da chuva). Faziamo-lo com ternura e à-vontade, como se a nossa vida tivesse sido sempre assim e aquele momento ali não fosse apenas uma meia-dúzia de fotogramas de um fim-de-semana ou de umas férias curtas.
Com a tarde mais amadurecida, sei que te convidei para tomar uns últimos raios de sol, agora que o Verão se esvai. Disseste que sim. No sonho estávamos sempre de acordo. Descemos à praia grande e estava vento e o céu encoberto. Foi então que sugeriste com a tua doçura “que tal se formos àquela pequenina?”. No sonho não me lembrei, o meu onirismo não é enciclopédico: esse areal minúsculo e cercado por escarpas cinzentas chama-se Praia dos Buizinhos. Concordei sem hesitar. Mas então aconteceu algo surpreendente: eu fui por um caminho de escarpas, junto ao mar. Tu deixaste-me ir mas não arriscaste o mesmo trilho. Subiste, foste pela calçada junto à estrada. E íamos falando, embora mais distantes. Quase a chegar à praia pequenina, deparei-me com quatro pescadores, sincronizados e alinhados, todos muito parecidos e vestidos daquilo a que chamamos, por toda a parte, um pescador. Preparavam-se para fazer os seus lançamentos, esticavam as canas atrás das costas, as chumbadas pendiam pesadas e balouçantes e os anzóis, lá mais à ponta, flutuavam com a aragem, ostentando inseguros minhocas que ainda se contorciam – e eu nem sei se as minhocas têm dores, mas não deve ser agradável ter um ferro curvo a atravessar-nos do esófago ao ânus. Pensei nas dores hipotéticas das minhocas e dei comigo a imaginar aquela ponta arpoada a espetar-se em mim. Ainda que não me atravessasse, haveria de fazer-me dores. Os pescadores ensaiaram o lançamento e o da ponta, aquele mais próximo de mim, fez o que eu temia: o fio passou demasiado perto e o anzol colheu-me dois dedos, os dois indicadores, e não sei agora explicar isto por palavras, precisava de papel e lápis para fazer um desenho e mostrar-te a figura absurda de uma pessoa que fica de mãos presas por ter sido colhida por um anzol que nem à água chegara. E logo nos dois indicadores, os dedos que indicam o caminho e mandam calar e pedem a conta. Pensei que fosse doloroso retirar o anzol da carne. Na vida real, aposto que é – e sei que o é, eu já cravei um debaixo da unha do polegar direito. Depois, tive de golpear a minha própria carne para que o anzol se desprendesse. É que, quando a ponta do anzol se enterra por completo, o pequeno arpão fica preso e só tem duas maneiras de ser retirado: ou puxando com força, o que o fará rasgar o tecido que atravessa; ou cortando o tecido para que o anzol se solte. No sonho, retirei o anzol recorrendo apenas à minha habilidade e a alguma paciência e tu não me ajudaste. Ou ajudaste? Neste momento do sonho concentrava-me apenas no anzol, nos peixes e nos pescadores. Os pescadores que quase me pescavam e que atiravam para longe as chumbadas na ponta dos fios. Estavam a pescar ao fundo. As chumbadas na pesca ao fundo são mais pesadas do que, por exemplo, os pequenos chumbos da pesca à bóia. Isto são coisas que aprendi com o povo e com o meu pai. Os nomes técnicos podem bem não ser estes. O papel da chumbada neste tipo de pesca é mesmo assentar no fundo do mar. É por isso que ela não está na ponta do fio. A ponta do fio é para o anzol. Os pescadores são muito engenhosos. Assim, a chumbada assenta no fundo, deixando que o anzol, com o seu isco espetado na ponta, fique mais solto e flutuante, ainda que preso. Imagina: a linha fica esticada até à chumabada; mas depois fica flexível, da chumbada até ao anzol, o que permite que o isco se bamboleie sensualmente diante de sargos, douradas, robalinhos ou das menos higiénicas taínhas (dá para pescar uma taínha enrolando um penso rápido em torno do anzol). A pesca desportiva serve, no fundo, para o ser humano afirmar a sua superioridade relativamente aos peixes. É uma espécie de tourada, mas com menos sangue, menos público e menos coragem. O pescador está ali para enganar o peixe acenando-lhe com uma minhoca ou outra coisa que possa apetecer à bicharada aquática. O peixe abocanha o isco e o pescador ri-se, satisfeito, pensando “enganei mais um!”. Estamos a falar de bichos que têm uma memória de escassos segundos e um Q.I. provavelmente impossível de medir, de tão diminuto que é. Mas uma pessoa não consegue deixar de sentir um certo orgulho por ser superior. De orgulhar-se da sua condição, vá. A gente deita o anzol com um isco; o peixe vai e morde e fica agarrado debaixo da língua ou por dentro da bochecha ou no céu da boca, e aquilo deve doer-lhe, mas um peixe não tem quatro patas, um peixe não é coisa que se leve a passear à rua, um peixe não faz muita falta vivo, a gente até já se habituou a ver os peixes encaixotados, congelados, abertos, arranjados, pendurados ou mesmo às fatias dentro de sacos da Pescanova. Um peixe serve para ser pescado e ser comido.
Depois, quando acordei, fiquei a pensar no sonho. Nisso de ser pescado. E de quem pesca o quê. Quem lança o isco na ponta do anzol. Eu gostava de ser pescador e, pessoalmente, acho que tens um ar bem suculento.
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