O homem que comprava cigarros
A situação repetia-se: poucos minutos antes do jantar, ele chegava perto dela, que cozinhava, e dizia-lhe "olha, vou comprar cigarros". Ela não gostava disso. Estremecia. Ficava nervosa, às vezes agarrava o cabo da colher de pau com mais força, como se o apertasse de raiva. Ou de medo. É difícil distinguir. Isto são coisas que se dizem, carecem de documentação ou comprovativo científico. Mas o certo é que o povo conta muitas histórias de gente que foi comprar cigarros e não voltou. Ela tinha medo que a sua história se tornasse em mais uma dessas que engordam os mitos e que um dia a vizinhança dissesse nas suas costas "coitadinha, diz que o marido foi comprar cigarros... olha, até hoje". Mas ela ficava nervosa não era só por causa do mito e da língua comprida da vizinhança. O que pouca gente sabe é que toda esta enervação tinha também origem no trauma: quando era miúda, o seu pai saiu para comprar cigarros - como saía, todos os dias, pouco antes do jantar estar na mesa. Certa vez, o seu jantar ficou na mesa à espera, a família ficou em casa à espera, toda a gente e toda a coisa à espera, ninguém jantou nesse dia e no seguinte só comeram porque já dava fraqueza nos corpos da família inteira. Na verdade, ninguém tinha vontade de comer. O pai não aparecia. O jantar acabou por ficar para os cães. "Se calhar foi comprar cigarros mais longe", disse ela, mentindo a si própria, com dores de estar a mentir, e a tentar confortar toda a gente e a sentir-se mal por perceber que estava a falhar. O pai fora comprar cigarros à América - soube-o anos mais tarde quando recebeu um postal de Nova Jersey a dizer "Catarina, deixei de fumar". Não ficou feliz nem infeliz, mas as recordações vieram-lhe todas ao de cima e, quando casou, descobriu que ainda tinha medo dessas compras de cigarros.
"Vou comprar cigarros" atirou ele enquanto apanhava as chaves de casa da mesinha da sala. Ui. A cebola saiu-lhe cortada em fatias largueironas, os golpes foram feitos à faca mas podiam ter saído da violência afiada de uma catana. E as lágrimas vinham-lhe de três sítios: dos olhos, por causa da cebola; da garganta, por causa do choro; e do estômago, por causa do medo.
Fechou a porta do prédio e subiu um pouco a rua. O café estava fechado. Que raio? A esta hora? Caminhou mais um pouco. Lá à frente, na esquina da esquerda, havia outra tasca. Eram só mais uns metros. Olha, fechado também. Está bonito isto. "Não tarda tenho que ir comprar cigarros à América, não?" Este pensamento - ele não o sabia - vinha carregado de tragédia, já se vê. Andou mais um pouco, lá ao fundo um beco onde havia três ou quatro tascas. Em chegando, espantou-se: nas vidraças, nas portas, nas janelas, nas paredes, nos toldos, em toda a parte havia escritos "não há cigarros para ti", "tabaco só ao balcão", "fumar causa infelicidade", "fechámos mais cedo", "proibida a entrada a animais" ou "introduza a quantia certa". "Caramba", pensou. "Não há cigarros, mau presságio". E era mesmo. Ele não sabia o quanto - eu sei porque conheço o fim desta história.
Desalentado, voltou para casa. Um homem sem cigarros é um homem nervoso. E ele estava com um mau pressentimento e isso é uma coisa que agrava os nervos às pessoas. Quando meteu a chave à porta sentiu a cheiro da comida. Cheirava bem. Entrou e foi à cozinha, queria saber o que havia para o jantar. O tacho com o arroz de coelho ainda estava ao lume e em cima da bancada havia um recado escrito a dizer "Ricardo: não fui comprar cigarros. Sabes que não fumo. Beijinhos, Catarina".
"Vou comprar cigarros" atirou ele enquanto apanhava as chaves de casa da mesinha da sala. Ui. A cebola saiu-lhe cortada em fatias largueironas, os golpes foram feitos à faca mas podiam ter saído da violência afiada de uma catana. E as lágrimas vinham-lhe de três sítios: dos olhos, por causa da cebola; da garganta, por causa do choro; e do estômago, por causa do medo.
Fechou a porta do prédio e subiu um pouco a rua. O café estava fechado. Que raio? A esta hora? Caminhou mais um pouco. Lá à frente, na esquina da esquerda, havia outra tasca. Eram só mais uns metros. Olha, fechado também. Está bonito isto. "Não tarda tenho que ir comprar cigarros à América, não?" Este pensamento - ele não o sabia - vinha carregado de tragédia, já se vê. Andou mais um pouco, lá ao fundo um beco onde havia três ou quatro tascas. Em chegando, espantou-se: nas vidraças, nas portas, nas janelas, nas paredes, nos toldos, em toda a parte havia escritos "não há cigarros para ti", "tabaco só ao balcão", "fumar causa infelicidade", "fechámos mais cedo", "proibida a entrada a animais" ou "introduza a quantia certa". "Caramba", pensou. "Não há cigarros, mau presságio". E era mesmo. Ele não sabia o quanto - eu sei porque conheço o fim desta história.
Desalentado, voltou para casa. Um homem sem cigarros é um homem nervoso. E ele estava com um mau pressentimento e isso é uma coisa que agrava os nervos às pessoas. Quando meteu a chave à porta sentiu a cheiro da comida. Cheirava bem. Entrou e foi à cozinha, queria saber o que havia para o jantar. O tacho com o arroz de coelho ainda estava ao lume e em cima da bancada havia um recado escrito a dizer "Ricardo: não fui comprar cigarros. Sabes que não fumo. Beijinhos, Catarina".
4 Comments:
Se continuas assim, não tarda tens aqui um livro de microcontos de alta qualidade.
Olha que me embaraças...
Elogio tipicamente português, de quem está roído de inveja:
Tu fazes-te, rapaz... Tu até levas jeito... Um bocadinho colado ao (introduzir nome de autor) mas sem a (introduzir característica do autor citado)... e olha que digo isto como elogio, hein?... no bom sentido... que tu até ainda podes vir a ter uma voz própria... isto até promete, assim pequenino e engraçado... claro, é uma fórmula que se esgota depressa numa coisa de fôlego maior... mas tu és novo, rapaz... continua... ainda tens tempo...
O meu elogio, em tom de piropo:
Eu, a ti, lia-te todo!, rapaz...
Muito bom.
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