sexta-feira, julho 23, 2010

Ela a subir a rua

Quando a noite ia adiantada, ela subia a rua e a rua era o desconhecido - como se tomasse uma nave espacial para sete rios e sete rios fosse noutro sistema solar. Ela andava a pé.
Era uma madrugada de quinta para sexta. Na sua cabeça, um objectivo: o cimo da rua. Não estamos a falar de duzentos metros, sequer. Isto são passos, uns pés, umas jardas. Qualquer coisa que dê para medir em termos humanos - não em milímetros; não em quilómetros, não em polegadas -, sem ser em muito nem em muito pouco. Meçamo-lo em hectómetros, vá: era um e picos.
Ela subia devagarinho, a rua era íngreme. Tinha muitas esquinas e esquinas imensas, que iam daqui até lá ao fundo, muito fundo. Tinha portas abertas, portas fechadas, montras gradeadas, montras iluminadas, néons e tijolos a emparedar os devolutos.
Ela subia sem grande classe. A saia era apertada. Não era demasiado curta, mas faltava-lhe elegância. Nunca seria primeira dama de França nem o esplendor da Casa Grimaldi. Mas tinha outro charme.
Subia com vagar ou até mesmo paciência. Ela não era muito nova. Tinha alguma juventude no corpo, sobrara-lhe dos vintes passados sem euforias. Gastava agora as rugas poupadas. Às vezes com conta-gotas; às vezes com contas esgotadas.
Ela não tinha pressa de chegar ao fim. Não tinha pressa nem tinha nome. Umas vezes foi Joana, outras foi Patrícia e de outras foi não sei quem. No fim, sobra pouco e o nome significa o quê?
A rua era só uma montanha. Demorava-se em passos medidos, uns melhores, outros assim-assim. Medir com olhos tortos nem sempre dá métrica certa certa. Ela gostava de obstáculos, de transeuntes e de surpresas.
O salto, alto e fino, afundava-se, a espaços, nas distracções da calçada. Perpendiculares e oblíquas, cruzamentos e entroncamentos: é tudo fenda, tudo é buraco. Rara, essa era a superfície da pedra negra.
Ela subia a conta-gotas, com saltos espetados em brechas. Às vezes arrancava o mundo com uma passada.