O contador do senúquer
Que o gajo estava inspirado e que lhe deu "assim, de esguelha e ela vai, trau trau trau, três tabelas e lá dentro, no buraco do meio, parecia que a sacana da bola até abanava as ancas". Foi desta maneira que mo contaram. E não me admira que assim tenha sido. Ele no senúquer era mestre. Senúquer e imperiais. É certo que treinava muito. Pelo menos três noites por semana... E que "metia a bola", sempre com classe e arrojo, "e depois sorria, dava um gole na imperial, inchava o peito". E o outro "anda lá com isso, que isto está a contar". O contador não pára para a gente se envaidecer. Ele sorria, ele alongava os gestos, ele beberricava a cerveja, pensava, repensava, olhava os ângulos, imaginava a força e, uma vez a postos, tuca. E a bola lá dentro. "Uma maravilha, não falhava uma". E o outro já não estava a apreciar a brincadeira. O outro começou por morder os lábios, às tantas já fincava as unhas de uns dedos nos dedos vizinhos num jogo de mãos esquisito e porventura doloroso. Quando a impaciência e o mau perder já atingiam o limite, rangia os dentes. "Estás a travar?" perguntava ele. E o outro rangia ainda mais, nervosinho. Certa jogada, já a derrota do outro ia pesada, estava o mestre a concentrar-se: apontava pacientemente à procura do ponto certo; o taco deslizava suave e leve, só a testar, em busca da medida certa para a velocidade e para a força; olhava as tabelas, não fosse uma solução melhor estar a escapar-lhe. E o outro, pela primeira vez durante a noite, sorriu. Depois falou. "Tanta vaidade... tanta alegria... tanta fleuma... tudo por causa de um jogo". O taco abrandou o movimento, o olhar soergueu-se um pouco e deteve-se na expressão do outro, a ouvi-lo. O outro calou-se. Ele sorriu. Voltava a preparar a tacada. E o outro "mas a tua vida... ai ai, se tu soubesses...". E ele pumba. A tacada saiu-lhe num impulso estranho, a bola aos trambolhões, tudo desajeitado. Parecia que tinha explodido - não de raiva mas de desorientação. "Se eu soubesse o quê, pá?" Inquiriu em voz grossa. Enquanto o jogo se desmoronava ele não pensava em mais nada. Ainda a bola branca não entrara no buraco do canto e já ele fazia contas de cabeça: seria a mulher? Pois claro, só podia ser, andava a ser enganado. Aquela cabra! Não, espera... podia ser outra coisa. Haveria alguém doente na família? Ou dinheiro, alguma dívida... alguém que andasse falar mal pelas costas. Alguma coisa que lhe estivesse a escapar. Nahh... uma coisa destas só pode ser mulher. Com quem seria? "Diz lá, cabrão, o que é que eu devia saber que não sei?" E o jogo todo espalhado sobre a mesa, todo desarrumado - logo o dele, que costumava ser tão metódico, lógico, quase simples. E o outro, encolhido e engolindo em seco "saca bola que isto está a contar".
3 Comments:
e o bailado do giz na ponta do taco?
A construção dos teus textos deve-te dar tanto prazer quanto aquela que o senúquer dá ao gajo
O que encarece as cervejas é o contador de senúquer, apesar de que, dialecticamente, as cervejas também encareçam o contador de senúquer.
Hão-de experimentar com bagaço. Ao segundo, nem se lembram que existe o contador do senúquer.
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