quarta-feira, outubro 21, 2009

Uma Vida a Dois

Eram daquelas pessoas que faziam muitos planos. Desde sempre e desde o mais pequeno detalhe. As coisas planeavam-se com minúcia, com rigor e com intenção de cumprir. Faziam planos e guardavam segredos. Eram pessoas herméticas e rigorosas, portanto. Este texto não é para ser lido nem interpretado. Estou apenas a juntar notas sobre combinações potencialmente trágicas para um pequeno conto sobre pessoas que gostam uma da outra e que vão ter um final inevitavelmente infeliz. Há personagens cujo fado é incontornável. Nasceram para estar erradas. Estas duas são um pouco diferentes. Erradas, erradas não estão. O que é que, na conjugação, matemática e metafisicamente, a equação humana dá erro. Do tipo, e estamos no campo das suposições: ele planeava a meias com ela percorrer as estradas desertas do Sul de Espanha, como nos filmes de estrada americanos. Queriam um carro descapotável, um chapéu de caubói, um auto-rádio com leitor de CD’s, para poderem ter uma banda sonora à Tarantino ou à Sergio Leone. Levavam notas à solta num saco desportivo para pagarem a estadia em motéis de beira da estrada. Uma máquina fotográfica digital e uma lomo fish-eye, para registarem a severidade do deserto agreste. Eles chamavam-lhe “solenidade” - havia ali qualquer coisa de impor respeito. E levavam mapas, vários mapas. Um caderninho com nomes de estalagens. Um violão, uma faca de mato e um pequeno revólver, para eventuais necessidades de resolver imprevistos. E uma pá no porta-bagagens. A pá é fundamental. Tudo isto, planeado e anotado entre os dois.
Porém, em segredo, ele planeava levá-la até, por exemplo, El Choro (que é para enfatizar o dramatismo) e, uma vez chegado, negociar com os ciganos locais. Negociar o quê? Negociá-la a ela. Ela, para o efeito, deve ter atributos físicos de notar à primeira vista. Não pode ser feia, não pode ser gorda. Tem que ter pinta. Em segredo, ele trocara já telefonemas (a partir de um telefone público) e fizera envio de diversas fotos actualizadas dela. O acordo estava firmado. O preço estabelecido levava muitos zeros e eu não posso agora gastar caractéres. No acordo entrelia-se “fazem com ela o que quiserem; podem cortá-la aos bocadinhos e fazer paelha, se vos aprouver”.
Mas, ela, por seu lado, planeava, também nos seus segredos, um projecto de vida diferente daquele que ambos haviam sonhado ao longo de meses e meses, sempre tomando notas e verificando mapas e organizando extractos de conta e comprando chapéus e CD’s de canções à caubói. Na verdade, ela não era mulher de um homem só. Viajada nos tempos de juventude, deixara em muito sítio o seu perfume e cicatrizes. Mas cicatrizes também ela as trazia. E uma delas fora feita em Almería. Por um gitano de nome Paco. Que dançava flamenco. E cantava com voz grossa e muito alta e batia palmas. Ela trocara com Paco alguns telefonemas. Ela também ia à cabine telefónica – mas ia a outra, para não se cruzar com ele. E é este o encanto do casal. De tão rigorosos e espertos que eram, sabiam há muito um do outro que se guardavam segredos. E sabiam, um do outro, que o outro também sabia disso. Nunca, porém, haviam tocado no assunto. Mantinham-no em segredo. Portanto, e por cautela – vá lá, também por respeito e, quiçá, para manter ilusões -, faziam questão de ir à rua “só fazer uma coisa”, à mesma hora, mas em pontos opostos do quarteirão. É de notar que ambos suspeitavam, ambos temiam, ambos tinham maus pressentimentos. Mas, diz o povo, “quem não tem telhados de vidro que atire a primeira pedra” (isto na Bíblia não era nada assim, não havia telhados de vidro). Nenhum deles se atrevia a acusar ou a tirar dos segredos a suspeita. Ela enviara a Paco o seguinte, no último envelope: sete fotografias dele (tipo passe, meio corpo, corpo inteiro, perfil, etc.), todas actualizadas; um mapa itinerário; um “plano B” que passava por Sevilha; 250 euros para comprar a pistola (o revólver ia sempre no cinto dele); e uma pequena nota onde se lia “a pá levamos nós... te quiero, gitano”.
Chegou o dia, a viagem começou. Pararam um pouco dpois de Badajoz, numa bomba de gsaolina de beira de estrada, daquelas estações de serviço desertas onde param camionistas para dormir a sesta. Ela foi à casa-de-banho (fugiu pela janela e correu correu correu até que saltou para dentro de uma camioneta carregada de fruta e aí se instalou, entre maçãs e pêssegos; a camioneta ia para Mérida). Ele ia “só fumar um cigarro, enquanto esperava” (assim que ela saiu, largou o carro e apanhou boleia na direcção contrária; a boleia foi oferecida por um casal de emigrantes portugueses na Suíça – aliás, ele era português; ela era suíça – que, em Madrid, se confundiram com as direcções e, como não encontraram a tabuleta que dizia Vilar Formoso, vieram andando andando andando... como estavam cá em baixo, iam aproveitar para conhecer Lisboa e ver a Expo; ele saiu em Elvas, agradecido e aliviado).

2 Comments:

Anonymous taínha said...

"agradecido e aliviado."

1:35 da manhã  
Blogger M. said...

ah isto é bom pa.

1:29 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home