quarta-feira, agosto 04, 2010

O Sul

Na cabeça dele aparecia sempre aquela imagem parva das pessoas a irem para o Sul, só porque estavam de férias.
E o Sul era uma coisa muito mais imensa - e ele sabia disso. No Sul... As formas desengonçadas da temperatura, as molduras aguadas da paciência, o Sol sem maneiras nem tolerâncias, as cores analógicas do fogo na terra... O Sul era como um norte virado do avesso por um bando de crianças num descampado, em technicolor.
"A gente, dantes, ia para o Sul na carrinha Ford Escort do meu pai. Era branca."
E fazia-lhe confusão essa maneira sofisticada de ir para o Sul. Pessoas que tinham empregadas e tudo. Gente com carreiras. Indivíduos com diplomas. Tipos e tipas que tinham comprado roupas de sair à noite na H&M ou na Zara.
Ir para o Sul não era ciência. Não havia matemáticas nem físicas nisso de pegar na trouxa e procurar água tépida e sol com força. Nem ciências nem pecado. As pessoas ainda têm direitos. Direitos que são óbvios. E dava-lhe nervos isso de as pessoas irem para o Sul e aparecerem nas revistas só por causa disso. Ou na televisão.
Para ele, ir para o Sul era uma naturalidade sem méritos.
Ele foi para o Sul. Obviamente, sem mérito nem esperança. Como todos os anos. Enfiou a mochila no expresso e partiu. Nem sabia para onde ia, ao certo. Ele sabia que o ser humano só chegara ao Norte por teimosia. Isso dos vickings e não sei quê... Palermices. Na altura ainda não havia falta de espaço. E depois pensava em coisas parvas "eich... nove milhões de pessoas?! Em Londres?!"... e sorria, meio surpreendido, meio assim-assim. Não dá para definir, a expressão dele era peculiar. Seria como quem diz "fod...âsse", mas a sorrir.
Portanto, ele não entendia. Não entendia como é que ainda dava para haver tanta gente que ia para o Sul. Como é que tanta gente não era do Sul. Por que é que tantas pessoas se haviam aglomerado em terras que, sendo próximas do Sul não habitavam no Sul, propriamente dito.
Ele era uma pessoa confusa, cheia de dúvidas, de confusões e dessas coisas. Quando chegou a Lagos e desatou a ler um romance de um russo do século XIX, teve uma epifania. No regresso, se tudo corresse bem na viagem para norte, haveria de inscrever-se em Geografia Humana. Ou então em Antropologia.

2 Comments:

Blogger desinês said...

Obrigado! :)
Hei-de chegar aos teus calcanhares de poeta dos subúrbios.
As letras dos Feromona são realmente qualquer coisa .
A minha admiração persiste .
Keep on rockin' :D

4:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Saudades desse Sul.

1:57 da tarde  

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