terça-feira, abril 12, 2011

Cogumelos!

Eles iam a descer a rua e discutiam muito. Dois homens e uma mulher. Ela tinha uma garrafa de plástico na mão. Uma garrafa de Coca-Cola. Mas ia cheia de vinho branco ou de qualquer coisa parecida. Estavam bêbados. Um dos homens acusava o outro de lhe ter roubado uma das sardinhas. Tinham parado num arraial e comeram sardinhas no pão. O mais pequeno acusava “era a última… e tu é que a comeste!” e o mais encorpado só dizia “cala-te, ‘tás bêbado…” e era um facto, ele estava bêbado. Estavam os dois.
Estava uma noite quente e a mulher bebia pelo gargalo. Ela tinha muito mau aspecto. Tinha uma cara estragada. As feições enfiavam-se pelo rosto adentro e sugavam-lhe os contornos originais. Os lábios eram finos e tinham feridas. Vestia pouca roupa, andrajos sem critério, um conjunto inestético de sobras. A noite estava mesmo quente. E ela disse “foda-se, parem com isso” e deu mais um gole na bebida.
Eu desci as escadas. Vim deixar o saco do lixo na rua. Eles ainda caminhavam, trôpegos e lentos. Barulhentos. Estavam à minha frente, a poucos passos de distância. Olhei-os e eles viram-me. Acalmaram-se um pouco. Julgo que tentavam focar-me, descobrir-me a silhueta, definir mentalmente as minhas formas e dimensões. “Quem são estes?” disse o mais corpulento. Entrei no prédio e fechei a porta atrás de mim.
Fui para a varanda e acendi um cigarro. Eles estavam lá em baixo. Ainda estavam a processar a informação relativa à minha presença no mundo - o momento em que o acaso me fez cruzar com o seu grupo desordenado. O mais pequeno avançou em direcção ao meu saco do lixo. Deu-lhe um pontapé. O saco rebentou. Havia lixo espalhado pela calçada – ossos de costeletas, pacotes de natas, restos de salada de tomate, restos de arroz, latas de atum e de cogumelos. A mulher disse “esse filho da puta não faz reciclagem”. Havia também espinhas e cabeças de sardinhas. O maior disse “podes comer essas ah ah ah” deu uma grande gargalhada, mas sem gosto. Penso que só tentava provocar o mais pequeno. E depois acrescentou “também era reciclagem” e então riu-se de novo, agora com prazer. E a mulher riu-se também. Tinha poucos dentes. E estava a fumar. O mais pequeno não riu e pediu um cigarro à mulher “dá-me um cigarro” e ela “foda-se, só me chulas” e o maior disse “paneleiro de merda”.
Continuei a fumar o meu cigarro. Agora o grupo analisava o meu lixo. Cambaleavam trazendo pequenos pedaços, pequenos dejectos até à luz do candeeiro de rua. Observavam com minúcia guardanapos usados, um copo partido, uma embalagem de manteiga Mimosa, pacotes de gelatina, duas cebolas podres. “C’stina…” disse o maior. “ó C’stina, porra… tu só dizes caralhadas a toda a hora… nem pareces uma gaja” e continuou a remexer. Abria com as mãos carcaças rijas, pão com cinco dias, à procura de qualquer coisa surpreendente. “Vai-te foder, meu cabrão de merda” disse Cristina. “Isso é mentira”. E era, até ao momento. O mais pequeno perguntou alto “o que é isto?” e ergueu o objecto amarfanhado para a luz. Era uma prata de chocolate. Cheirou. Lambeu. “É chocolate” concluiu.
Um deles olhou então para cima. Viu-me. Processou a informação com toda a paciência. E eu fumava com calma. “Dá-me um cigarro” disse. E eu não respondi. “Paneleiro de merda… mete os cigarros no cu!”. Atirei-lhe com a beata ainda acesa “foda-se!” gritou enquanto tentava desviar-se. Acertei na mulher. Cristina não deu por nada. Esgravatava o lixo e encontrou uma lata de cogumelos com dois ou três pequenos cogumelos laminados lá dentro e disse “olha cogumelos” e o seu cabelo começou a arder. O maior olhou-a e começou a rir. O mais pequeno tentava indignar-se comigo. Focava-me fechando um dos olhos “eu sei quem tu és, cabrão de merda… eu apanho-te” e Cristina ardia. Eu disse “cala essa boca, vai dormir” e fechei a janela.