terça-feira, março 01, 2011

O cacto

O meu plano era francamente simples: chegado ao jardim de Santa Clara, sentava-me na relva, sacava da minha pá de jardineiro – na verdade, era uma pá de plástico que eu tinha comprado num bazar chinês, daquelas com que as crianças brincam na praia -, escavava um pouco, guardava a terra num saco plástico, enfiava o saco na mochila, metia a mochila às costas; a seguir, pegava em mim e bebia um café no quiosque e depois seguia a minha vida, regressando a casa. Sem dar nas vistas.
A simplicidade de certos planos é absolutamente subestimada por determinadas pessoas. Nomeadamente, pessoas agentes da autoridade. Uma dessas pessoas aproximou-se de mim enquanto eu, pueril, escavava com esforço o meu buraquinho para de lá extrair uns míseros 300 ou 400 gramas de húmus, terra fértil constantemente presenteada pelos cães da vizinhança e pelas folhas que caem das árvores em certas estações do ano, às vezes. Cheirava a xixi. “Bom dia” e eu ergui, surpreendido, o olhar e respondi “bom dia” com humildade e sem qualquer intenção “o que é que o senhor pensa que está a fazer?”. Parei de escavar. Na verdade, fui apanhado de surpresa. Hesitei um pouco “estava aqui a tirar um bocadinho de terra…eu…”
- Mas o senhor sabe que esta terra é propriedade pública…
- Isso é… uma pergunta?
- Não senhor, é uma afirmação. Sabe, não sabe?
- Julgo que sim… mas olhe, é só um bocadinho (e levantei o saco, para provar que não estava a ser sôfrego nem, tão pouco, era minha intenção empobrecer a propriedade pública).
- Pois então, se o senhor sabe, devia saber que não é permitido subtrair terra do espaço público…
- Mas é proibido?
- Não é permitido.
- E adicionar?
- Desculpe?!
- Adicionar terra ao espaço público. É permitido?
- (Coçando a cabeça, por debaixo do boné) Ora… eu estou em crer que proibido não é. A não ser que estejamos a falar de uma grande quantidade de entulho, não é? – acrescentou bem-disposto, com pronúncia beirã, sorrindo quase a rir em seguida. – Agora, subtrair é que não pode. Propriedade pública é a propriedade de todos nós… ora não é?
- Mas, senhor agente, este bocadinho que aqui levo deve ser menos do que a parte que me caberia se a gente dividisse a propriedade pública por todos. (Levantei novamente o saco, mostrando o meu pequeno quinhão).
- E, vamos lá a saber, para que é que o senhor quer isso?
- Sabe, é que eu comprei um cacto, um daqueles minúsculos, no supermercado. E aquilo vem num vaso que é muito pequenino, em plástico, quase nem terra tem. E eu desconfio que se eu não mudo o cacto de vaso, nem o bicho me cresce, nem conseguirá sobreviver, se calhar. Aquilo é tão pequenino, o vaso… Pouco mais que uma xícara de café.
- Um cacto… hum…
- E eu entretanto lembrei-me que podia mudá-lo para um recipiente novo que eu inventei. Peguei numa daquelas embalagens de sumo de laranja de litro e meio, também do supermercado, e cortei-a sensivelmente ao meio.
- Sensivelmente?
- Sim, para não magoar… Depois fiz-lhe um furinho cá em baixo
- … sensivelmente?...
- Pois claro… que é para a água escoar. Que eu vi, lembro-me que os vasos lá em casa da minha avó, quando eu era miúdo, tinham todos um buraquinho. E eu quero fazer as coisas com perfeição. Com rigor.
- É verdade. Buraquinho. Confere.
- E agora tenho tudo a postos para fazer a trasladação do pequeno cacto. Porém, a terra que vinha dentro do tal vaso do tamanho de uma xícara mal chega para tapar o buraquinho da metade do pacote de sumo de laranja de meio litro do supermercado.
- Pois, imagino…
- E então lembrei-me “por que não subtrair um pouco de húmus do jardim de Santa Clara?”.
- Estou a ver…
- E cá estou. E agora o senhor diz-me que é proibido…
- … não é permitido…
- … não é permitido eu levar daqui um bocadinho de terra.
O agente fez uma pausa. Devia ter os seus cinquenta anos, ou perto. Não era gordo, mas era robusto. De média estatura, a puxar para o alto. Tinha ar de homem de família. Muito português, indubitavelmente português: entre o moreno e o rosado, com o rosto invadido pela barba cerrada que o escurecia, apesar de desfeita seguramente nessa mesma manhã.
- Como é que se chama o cacto?
O meu cacto não tinha nome. Por momentos, o meu cérebro enregelou: ali estava, diante de mim, a grande oportunidade de conseguir a minha pequena porção de terra pública que salvasse o meu pequeno cacto. Bastava-me escolher agora um nome simpático para o senhor agente. Algo que o tocasse.
- Marília.
Sem pudor, tentei acertar-lhe no nome da mulher.
- Marília?!
- Sim… é uma cacta.
Os meus olhos reluziam de esperança.
- Leve lá daqui isso e… cumprimentos à Marília.
Piscou o olho, sorriu e virou costas.
- Gostou do nome? - perguntei, sorridente, ainda sentado no chão. Mas acho que ele não me ouviu.