segunda-feira, dezembro 06, 2010

A roupa da vizinha

Três da manhã. A cozinha da minha vizinha do terceiro andar fica precisamente debaixo do meu quarto. Aparentemente, a madrugada é o período de eleição da minha vizinha para lavar roupa na máquina. Num prédio antigo, com chão e tectos de madeira, isto significa que, ao invés de dormir, dou voltas na cama, vociferando internamente “a grande vaca!... outra vez…”.
A minha vizinha de baixo é peculiar. Ligar a máquina de lavar roupa às três da manhã é, para ela, natural, normal e legítimo. Já, por exemplo, tocar viola num sábado à noite, durante um jantar de amigos, em minha casa – digamos, às dez e meia da noite – é susceptível de merecer três ou quatro vassouradas no tecto (dela; debaixo do meu soalho, portanto).
Não saí da cama. Faltou-me vontade. Intenção não me faltou, a sério. Mas é Dezembro, estão dois graus Celsius e a minha cama é de um conforto difícil de descrever. Porém, prometi a mim mesmo que “da próxima vez não perdoo, cadela anti-musical, maldita dona de casa noctívaga!”. Minutos depois, percebi que jamais poderia cumprir a minha promessa.

***

A indignação, tal como o profundo incómodo, não são luxos exclusivamente meus. No segundo andar vive outra pessoa.
Ouvi passos na escada. Pesados, fortes, determinados. Numas escadas antigas em madeira de idade avançada, uma escuta atenta à subida de alguém permite-nos determinar o seu estado de nervos. Esta pessoa estava nervosa. De uma maneira negativa. Não propriamente furiosa. Mas decididamente chateada.
Parou no terceiro andar. Bateu quatro vezes na porta. A palavra bater não é adequada. Antes, agrediu a porta desferindo-lhe quatro golpes. A minha vizinha veio abrir.

***

O homem do segundo andar é um ser raro. Primeiro, porque raramente se o vê. Pessoalmente, troquei com ele meia-dúzia de palavras a propósito da fechadura da porta do prédio – velha demais; dificílima de se lhe introduzir a chave.
É uma pessoa bem-posta. Homem de meia-idade, veste-se condignamente. Diria até com algum capricho e uma discreta elegância.
O meu vizinho é um melómano. Tem bom gosto. Descendo as escadas à tarde ou ao início da noite, é frequente ouvir-se rock n’roll dos primórdios, fado de excelência, clássicos e raridades do jazz. A partir das dez da noite, nada se ouve – a vassoura da vizinha do terceiro andar tão facilmente bate no tecto quanto no chão.
Apesar de digno e composto, é claramente um homem de rastilho fácil. Disse-me, na primeira e única vez em que trocámos algumas palavras – a propósito da tal maldisposta fechadura – “esta merda já devia ter sido trocada! Ca pôrra de tortura… Não acha?! É inadmissível!...”. Eu concordei, embora com menor revolta. “Este Nivaldo é um chulo! Anda aqui, diz que faz isto, que faz aquilo… Não faz um cu! Parasita…”. De novo, concordei. Agora, com forçada veemência, mais para vincar a minha solidariedade do que para expressar a minha – pequena, irrisória, irrelevante – indignação.

***

Nivaldo também vive no terceiro andar. Partilha a casa com a lavadora da madrugada, a bruxa da vassoura, a ditadora do silêncio.
Nivaldo é um brasileiro baião dos seus cinquenta e poucos anos. Tem bigode e suíças. Usa um chapéu baião tradicional. Tem a pele muito queimada do sol e fala ininterruptamente, sendo que são raras as vezes que tem, de facto, alguma coisa para dizer.
É suposto Nivaldo ser uma espécie de contínuo do prédio, um zelador do seu bom estado e funcionamento, vá lá. Cada gota que cai do tecto, cada infiltração nas paredes, cada cano roto ou esgoto entupido – qualquer problema deverá ser-lhe comunicado. Da minha parte, foram várias as vezes em que o chamei. Na maioria das ocasiões, o problema era apenas um: pequenas obras na casa que Nivaldo e a sua equipa iniciaram mas que nunca se houveram dignado a dar-lhes desfecho. De todas as vezes, o castiço baião marcou comigo uma data para dar solução à questão. Chegada a data, Nivaldo veio, pôs-se ao corrente da situação, verificou, teve opinião e agendou nova data para, então sim, providenciar solução para estas minudências. Chegada a nova data, Nivaldo vinha, novamente de mãos vazias, avaliar a situação – ou, na sua expressão, “ver o que se passa”. E assim por diante, até uma espécie de infinito em que Nivaldo fazer, não fazia; mas que “via” com grande frequência e uma postura quase profissional.
Ninguém sabe se Nivaldo e a minha vizinha partilhavam mais do que apenas as paredes da casa.

***

Quando a porta do terceiro se abriu, uma voz irada e masculina disse, num grito controlado, “cabra de merda, então isto é que são horas de lavar a roupa?!”. Ouviram-se algumas palavras indistintas e movimentos no interior do apartamento. A porta fechou-se e soaram alguns baques surdos, juntamente com estranhos guinchos, primeiro, e gemidos frágeis, em seguida. Depois, nada mais se ouviu.
A estranheza fez-me sair da cama. Vesti o meu roupão de estilo Hugh Hefner, presente da minha avó, oriundo de um Natal remoto. Enfiei os meus inseparáveis chinelos do Benfica – estes, presente da minha mãe, uns chinelos almofadados, confortáveis e quentes, capazes de fazer qualquer Inverno parecer uma época aconchegante.
Desci e bati à porta. Sem agressividade, com as nozes dos dedos leves e precisas, delicadas mas sem hesitação. Encostei o ouvido à porta. Alguém se lhe dirigia arrastadamente.

***

Trazia um martelo de orelhas na mão direita – abrira-me a porta com a esquerda. Tinha salpicos de sangue no roupão branco, na cara e nas mãos. Disse-me “entre. Encontrei ali um disco de bossa-nova, vou pô-lo a tocar”. Assim fez. De seguida, serviu-se de whisky e perguntou-me se também queria. Acenei que sim, vagarosamente. Eu estava um pouco assustado.
No chão, no meio do chão da sala, a minha vizinha esvaía-se em sangue. A cara disforme, ferida e amassada; na cabeça, apresentava as feridas fundas de vários golpes convictos com o martelo. A vassoura estava caída a seu lado. O melómano, depois de me servir a bebida, apanhou-a e tocou com o cabo no peito da mulher. Não houve reacção. Sentámo-nos.

***

“Vem minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser”. Trauteávamos tranquilamente enquanto olhávamos para a rua. Eu fumava um cigarro, bebíamos whisky. O meu vizinho não fumava e abriu até uma janela porque, segundo ele, “não se fuma na casa desta mulher”.
“Não era melhor chamarmos uma ambulância?” perguntei eu. “Hum” encolheu os ombros “acho que já não vale a pena.
- Por que é que… fez isso? – e apontei para o martelo, vermelho do sangue.
- Enervei-me.
Mais tarde, explicou-me que “já eram muitos anos disto” e que, portanto, “já chegava”.
“Eu venho de uma terra onde a vida é dura, sabe? Uma pessoa tem de ter sempre qualquer coisa à mão para se defender. O martelo, por lá, pode ser a nossa salvação. Aqui, como lá, uma pessoa tem de saber defender-se, ora. Tenho ou não tenho razão?”.
Ele vem de Mafra.
“Temos lá ratos do tamanho de cabras – e esta cabra era muito rata -, que são ferozes como piranhas! E isso é agora. Na última idade do gelo, chegaram a atingir o porte de um mastodonte! Palavra. Ainda agora uns cientistas encontraram uma ratazana congelada, mais de 300 metros debaixo do chão. Mal cabia num camião da câmara. Estão a construir um parque de estacionamento subterrâneo e deram com aquilo”.
Felizmente, agora os bichos são mais pequenos e é possível alimentá-los com vacas, para que não saiam dos esgotos, disse. “Pelo Natal, é costume atirar-se-lhes uma zebra, um búfalo” divagava, justificando o porte e uso do martelo de orelhas. “Eles gostam do que é exótico, como qualquer um de nós”. Evidente.
Para além de ferozes, ágeis e possantes, “têm um gosto apurado. Uma vez por outra, atiramos um sem-abrigo. Para as ratazanas, é gourmet. E isso que os canibais dizem, de a carne branca ser menos saborosa… pff… tretas. Aqueles bichos devoram um branco como devoram um preto ou um chinês. Só com os ciganos é que são mais esquisitos – e ainda bem, porque não temos lá muitos”.

***

“E eu pensei: ora, se esta grande cadela só me azucrina, se não me deixa ouvir música e ainda me acorda às tantas da manhã para lavar cuecas e camisolas interiores, tenho que lhe dar um jeito”. E deu.
“Amanhã vou à terra e deixo-a no depósito dos ratos. Há destinos piores”.
Enquanto me punha ao corrente de todo o seu plano, encheu ambos os copos pela terceira vez. O disco terminara. Na poça, o sangue coalhava. “Só têm brasileiradas aqui…” Escolheu um de Chico Buarque, ao vivo. Ouviu-se alguém meter a chave à porta. Nivaldo entrou. Olhou-nos com algum espanto; observou o corpo da mulher no chão, com curiosidade. Por fim, disse “a máquina inda tá lavando? Pôxa, cara… odeio ter que estender essa pôrra às quatro da manhã. Ainda por cima com esse frio, tá vendo…”

3 Comments:

Blogger JNF said...

Olha, uma pergunta no Quem Quer Ser Milionário sobre música e uma das hipóteses era Feromona. E ainda falaram de um Diego "Arnés".

11:30 da tarde  
Blogger Diego Armés said...

O Malato é meio disléxico, não ligues...

1:17 da manhã  
Anonymous john holmes said...

muito bom, senhor arnês, mesmo, e esta estória vai acontecer neste prédio mas com uma suposta lavadora de escadas ;)

7:21 da tarde  

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