quarta-feira, abril 13, 2011

Numa cama, numa casa qualquer

Levantou-se, cabelos desgrenhados, t-shirt amarrotada e suja, coçou-se, foi à cozinha e bebeu água. Pôs a cafeteira ao lume e sentiu o cheiro bom da manhã. Era Primavera, estava sol, era cedo. Começou a cheirar a café fresco, foi lavar os dentes. A barba de quatro dias pedia lâmina. Mas ele não tinha tempo. Abriu mais a janela da cozinha e sentiu uma brisa morna. O carteiro passou lá fora e deixou-lhe qualquer coisa na caixa. Fez torradas e serviu-se de café. Antes de se sentar foi à caixa do correio buscar o jornal diário e o que mais houvesse – contas, um aviso de corte de electricidade, publicidade a um supermercado, flyers de yoga, flyers de reiki, flyers de restaurantes indianos, flyers de restaurantes chineses, uma proposta da Cofidis e um envelope sem remetente. Começou pelos flyers de reiki.
Acabou as torradas mas ainda tinha café para beber. Antes de se dedicar à leitura do jornal, olhou de novo o envelope. Trazia apenas o seu nome e a sua morada e um selo de remetente francês. Ficou intrigado mas não o suficiente para não se embrenhar primeiro na leitura da página desportiva. Leu-a quase toda e foi tomar um duche.
Quando saiu do duche, ainda sem se enxugar, foi até à mesa da cozinha e pegou no envelope. Hesitou antes de abrir. A aura de mistério de um envelope sem remetente deu-lhe vontade de o manter assim, incógnito, desconhecido, misterioso, indecifrado. Abriu o envelope e tirou lá de dentro um pequeno pedaço de papel. Parecia ser um bocado de um toalhete de restaurante, rasgado à pressa. Manuscrito e nervoso, o texto dizia assim:

A única imagem que guardo nossa é de ti a foder-me por trás, numa cama, numa casa qualquer. Não era a tua. E quando te vieste, deitaste-te cansado mas a sorrir. E eu acabei em cima de ti, a foder-te. Eu não queria parar. Foi a melhor noite de sexo que tive. Não consigo deixar de querer foder-te. E, se começar, não sei se vou querer parar.”

Tinha uma pequena nódoa de vinho no canto inferior direito que manchava a palavra “querer”. Deixou o papel em cima da mesa-de-cabeceira, secou-se, vestiu-se, calçou-se. Não reconhecia a caligrafia. Não se lembrava de tal episódio. Não lhe ocorria qualquer ex-namorada ou affair que vivesse em França. Restava a possibilidade de alguma one night stand esquecida nos confins da memória. Porém, havia qualquer coisa na mensagem que sugeria sentimentos. E as one night stands não suscitam sentimentos, pensou.
Era sexta-feira. Passou o dia a embrenhar-se na intrigante história de uma carta sem remetente com uma mensagem enigmática. Questionou-se várias vezes sobre quem poderia ser essa ninfomaníaca carregadinha de desejos. O pensamento excitou-o. Excitou-o muito. Percorreu, de memória, todo o seu arquivo de mulheres. Não tinham sido assim tantas. Pelas suas contas, catorze, no total. Sem contar com putas – apenas mulheres sem cachet. Agora, mais velho, solteiro, sem namorada, por vezes sentia necessidades. E a masturbação não satisfaz tudo. Às vezes é preciso um corpo, um contorno. Um olhar, um odor, uma respiração ofegante para além da sua própria.
Teve pressa de chegar a casa e nem sentiu fome. Fechou-se na casa de banho. Excitado como estava com toda esta ideia, não demorou muito até suspirar de prazer. Imaginou a autora da carta a escrevê-la numa esplanada parisiense, ao sol, com um vestido leve, decotado, as pernas cruzadas de maneira insinuante. Lisas, bronzeadas, apetitosas. Imaginava-a de baton vermelho vivo e cabelos castanhos levemente ondulados, macios e pesados caindo-lhe pelos ombros bem desenhados, um deles descoberto revelando uma alça de soutien. Imaginava-a chamando-se Sara ou Luísa ou Inês ou Isabel escrevendo naquele canto de toalhete à pressa enquanto um namorado qualquer chamado Jean Piérre foi lavar as mãos. E ela, vendo-o levantar-se, lembrou-se dessa noite gloriosa de que ele, agora, não tinha a menor recordação. E então imaginou também essa noite com uma qualquer Sónia ou Patrícia, numa casa que não era sua, numa cama que não era sua, a ser praticamente abusado por uma mulher ciosa, quase indecente, ávida, cheia de apetite e de energia. E imaginava-se a si mesmo sorrindo entre as pernas desse corpo licencioso e moreno, rodeado por coxas sedosas, envolto no aroma da carne e dos prazeres que a carne dá.
Imaginando tudo, voltou à casa de banho e voltou a não se demorar. Continuava sem sentir fome e relia insistentemente o bilhete. “Eu não queria parar” essa frase excitava-o como nenhuma outra até então. “E eu acabei em cima de ti, a foder-te”. Terceira vez. Demorou um pouco mais. Acabou por deitar-se, cansado. Não jantou e adormeceu.
No dia seguinte levantou-se tarde. Sentiu-se dorido. Passou o dia em casa. O bilhete ocupava todos os seus pensamentos. E essa mulher que não deixou memória não lhe deu tréguas à imaginação. E essa noite esquecida não deixou em paz o seu corpo que, sempre excitado, se foi consumindo e espremendo em gestos cada vez mais maquinais. Não saiu de casa durante todo o fim-de-semana. Não chegou sequer a vestir-se, a barbear-se ou a tomar banho. Bebeu café e Coca-Cola. Comeu pizzas que mandou vir. Estava obcecado.
Segunda-feira amanheceu cruel e nublada. O cansaço e as dores no corpo tornaram o seu despertar particularmente penoso. Foi á casa de banho. Tentou mijar e doeu-lhe muito. Parecia entupido. O carteiro passou e deixou-lhe coisas. Não lavou as mãos, sequer. Saltou porta fora e revolveu a caixa de correio. Não quis saber do jornal ou dos flyers do reiki. Procurou um envelope sem remetente. E encontrou.
Sem jeito, rasgou a abertura e um pouco do papel. Desta vez era papel de carta e a letra não era apressada. A mensagem era curta. Dizia só assim:

Aposto que já bateste umas vinte à custa da outra carta, meu tarado do caralho. Deixa-te disso, palerma, estava no gozo contigo. Só queria avisar que chego quarta-feira. Dá para ficar em tua casa até ao fim-de-semana? Grande abraço, João”.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que íncrível! Quero acreditar que isto aconteceu mesmo, a alguém, algures, em qualquer momento.

1:02 da manhã  

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