segunda-feira, maio 02, 2011

Com um Bic encarnado

Espetei a pá na terra endurecida. Uma terra amarela com uns tons avermelhados, às vezes. Só queria aproveitar aquele sossego. Guardá-lo num frasco e esperar que tudo ficasse assim calmo.
A tarde já não estava para durar. O sol já não era forte, descia com toda a sua tradição. Era um gesto vulgar, o do sol. Uma coisa já banalizada. Enterrava-se nos cabeços a Ocidente. Sem surpresas. Sem pressa nem vagar.
Na geleira, no porta-bagagens, ainda havia cerveja. Tirei uma. Saquei a carica com o isqueiro. Aos anos que eu não sacava caricas com um isqueiro. Era um Bic encarnado, com que acendi o cigarro, a seguir.
Aquela cerveja e aquele cigarro, o sol e a terra dura, entre o dourado e a cor do sangue. Ena, lá estava eu a pensar como se fosse um poeta, caramba. Eu sozinho ali, a fazer listas e balanços na minha cabeça. Havia ervas, tufos raros e espaçados. O chão era mais poeta do que eu. Uns arbustos ao calhas. Uma estrada nacional sem gente, sem carros. Sem bichos. Não havia vento. Às vezes vinham brisas tão ao calhas quanto os arbustos. Não havia pássaros. Nada acontecia se eu ficasse quieto. Se o meu coração parasse, aquele sítio saía numa polaroid quadrada. Tirada por Deus. Ou por ninguém. Uma polaroid espontânea. Cósmica.
O meu coração podia parar. Há momentos que eu gostava de fotografar com violência e alma e aquele era um desses momentos. Fotografava e depois revelava-o com um líquido metafísico. Gostava de ficar com esses momentos na cabeça como tatuagens com cheiros e sons, palpáveis ao pensamento. Queria fabricar memórias com a respiração. Guardar aqueles bafos de fumo e goles de cerveja e fazer com eles uma estátua à existência, sempre ao pôr-do-sol, uma coisa assim infinita. No meio do nada. Com contornos duros.
Há momentos que eu gostava de fotografar com gelo, com a respiração e com os olhos. Mas os olhos não guardam nada. São só berlindes com mira telescópica. A vida passa-lhes à frente e eles não memorizam coisa nenhuma. O meu armazém das coisas sempre foi mais o estômago.
Ali estava eu, a pensar na vida. Todo cheio de lirismos e existencialismos. Que é da vida se não pensamos nela, não é? Só existimos quando damos por isso. E esta ideia nem sequer é minha.
Pensava na vida e pensava na morte. A circunstância era adequada. Nunca fui pessoa de andar a matar. Mas fossem bichos ou fossem pessoas. Fossem traças ou escaravelhos. Quando era puto, ainda matava umas formigas, umas moscas. Mas depois fiquei pacífico e já nem queria saber disso. Nem quero.
Abri mais uma cerveja. Acendi mais um cigarro. Apeteceu-me ouvir música, mas não tinha como. Imaginei o I Can't See You do Tim Buckley. Não. Era um tema demasiado nervoso. O momento era mais de sossego e de retiro. Foi então que a minha memória sugeriu, sem eu ter feito nada, o Strange Feelin' e eu fiquei feliz porque a minha memória ainda me compreendia. Era uma amiga fiel. Tal como o Bic encarnado.
E ali estava eu, numa espécie de deserto, à beira de nada e com nada fundamental nas mãos. A apologia do vaizo. A elegia da minha existência. Nem um grilo como testemunha e o sol a pôr-se.
E ali estava ela. Completa, acabada e cada vez menos morna. Cada vez mais morta a cada minuto. Olhei para a terra remexida e sem sinais. Não lhe pus uma cruz na campa. Não pus coisa nenhuma naquela campa. Só o meu suor. Fui eu que abri aquele buraco. E fui eu quem o cobriu de terra. E ao pensar nisto lembrei-me d' A Morte de Ivan Ilitch. Nem sei porquê. São coisas que nos vêm à cabeça, é morte e a gente associa. Morte é morte. Podia ter sido a Morte em Veneza. Mas prefiro Tolstói.
Ela não agonizou como Ilitch. Tomou comprimidos e mandou-me uma mensagem a pedir que a fosse buscar. Deixou a porta entreaberta. A das traseiras, que dá para a cozinha. Quando cheguei, estava no sofá, sentada, a cabeça pendida para trás. Sem pulsação. Olhos e boca muito abertos. Tinha vestidos uns calções de futebol. Da AS Roma. E uma t-shirt das tintas CIN. Não tinha soutien. Notava-se.
Não a enrolei num lençol. Não lhe fiz mortalha. Nem chinelos lhe enfiei nos pés. Peguei nela assim, como estava, e pu-la no carro. Como se fôssemos embora. Passear, outra vez. Ver o caminho, apanhar sol. Ver o mar do Sul. Mas não fomos. Levei-a para lá, para o tal deserto da polaroid. E deitei-a numa cova feita por mim. É isso.
A verdade é que sempre sonhei enterrar alguém no deserto. A beber cervejas e a fumar cigarros ao pôr do sol. E depois ir-me embora a conduzir com as janelas abertas e a pensar em coisas fúteis. E a ouvir coisas estranhas na rádio. Relatos de futebol de clubes desconhecidos das divisões distritais. Coisas assim.
Abri mais uma cerveja. Fechei a bagageira. Já não havia sol, só aquela coisa ruborescente no céu, de um lado, e o azul escuro do outro lado do mesmo céu. Acendi outro cigarro e sentei-me ao volante. O carro não tinha rádio. Era um carro velho, à minha medida. Arranquei. E pensei "havemos de repetir".