quinta-feira, setembro 27, 2012

Irrelevantes fósseis

[sobretudo a ti, que só queres ser um eleitor
votar ao centro - e é por favor -
cumprir o calendário eleitoral
isto é, quando a coisa se propicia
que a vida não é só democracia
há sempre um centro comercial
e as obrigações do consumidor:]

tendes sempre ideias bestiais
contra o grão-poder dos capitais
mas falta-vos o tempo e a bondade
para fazer por vós, pela sociedade,
faltou-vos os colhões
e a decência
e alegais então vossa inocência
agora que vos faltam à miséria do conforto alguns tostões

podeis clamar por clemência
meter até cunha celestial,
neste país ninguém leva a mal -
se é por travessas, vem excelência;
se vier por portas, fica assessor,
ou secretário, ou assistente de senhor doutor -,
isto é Portugal
novecentos anos de plácida existência
e uns poucos menos de desistência

somos tão pequenos em Nação
e tão maiores à proporção
do meu metro e meio
e do teu e oitenta
e é esta mentira que nos alimenta
o espírito cobarde e quieto aqui
hoje, amanhã, há séculos e até ao fim
mas não me apontem o dedo a mim:
eu vivi e escrevi
não lutei muito, mas nunca me esqueci
de que existem outros, meus irmãos e vizinhos,
pobres no bolso, pobres no espírito,
pobres portuguesinhos

e é por vós que me acendo
quando tudo em mim se apaga
sois todos tão certos
e todos tão espertos
porém, humildes, pois pertence
ser assim, de uma maneira astuta e vaga,
pessoas correctas, modestas e dóceis
cravadas no sofá da sala, irrelevantes fósseis

e sois tão anarcas quando chove
na TV a carga sobre quem se move
sois tão radicais quando vos calha
e só mesmo a coragem vos falha
quando a dimensão paternal de quem governa
resulta num penhor ao fardo de palha
que comeis, à vez, nesta caserna
protestando que é vossa tal migalha

e eu não me mexo, eu fico calmo
para sair à rua e lutar falta-me um palmo
mas penso - e muito - e digo coisas
movo as mãos e a boca
não faço só o que posso
que esta voz não ficou rouca
a rezar o pai nosso
escrevo por mim, ainda não por nós,
mas escrevo até ao osso
e grito até perder a voz

somos marialvas e saloios,
somos algarvios, minhotos e alentejanos,
somos tudo junto e há muitos anos
mas tudo isso é pouco
se formos nada em conjunto
somos tão ordeiros em manada
e estamos todos sós e em sufoco
temos todos muitos sonhos, muitos planos,
e memórias ancestrais e orgulho ôco
em coisas que foram, sim, tão bem feitas
mas por homens bons de outras colheitas

não somos nem miragem
nem utopia
vivemos conformados e em democracia
não somos esta paisagem
nem dela o alimento
e o nosso pobre sustento
é lembrar de outros a passagem
«por mares nunca dantes navegados»
enquanto derivamos, revoltados
mas em sossego
por vergonhas que embaraçam o próprio ego
na esperança de que venham amainados
tomos de água que nos levem de viagem
daqui para fora
como se o país que é nosso
fosse agora
um lugar perdido na demora
de encontrarmos em nós próprios um colosso
que nos una, que nos funda, que nos nasça
entre os dedos, o coração,
a latitude e a casta
e que nos case, uns e outros, por amor,
à pátria, à terra nossa,
ao que vale a pena e o esforço, em redor

somos portugueses
tristes, abençoados
e sem saber como lidar com os legados
e a beleza dos presentes dos passados
somos gente com penas e com choros
gente com fados e com touros
preservámos sem critério mil tesouros
pendurámos cordões de ouro amargurados
nas santinhas do verão
para buscarmos, em qualquer lado, o perdão
mas sempre ignorando o real pecado

somos travestís de cidadão
alinhados, sem coragem nem comunhão,
contra um muro de gente sem raíz
que não percebe no do lado um seu irmão
e não entende nessa irmandade o seu país.