terça-feira, maio 03, 2011

Pimentos padrón

Tu sais à noite com a tua mulher. Vão jantar primeiro. Provavelmente, comida indiana. A seguir, então, vão sair um pouco. Encontram amigos, bebem caipirinhas, mais tarde bebem cerveja. São apresentados a alguns amigos dos amigos. E tu mal te apercebes disso – não é coisa que te prenda a atenção.
Chegam a casa, tu e a tua mulher, e ela diz-te “aquela Ana Filipa é muito bonita, vistosa…” Fazes um esforço para perceber quem é a Ana Filipa e a que propósito se fala dela. Não obténs resultados. A tua busca cerebral é em vão. Desistes e assumes “não faço a mais pálida ideia de quem seja a Ana Filipa”. Bebeste vinho ao jantar; bebeste whiskey a acompanhar o café; bebeste duas caipirinhas; bebeste duas cervejas. “Tu também… nunca reparas em nada, nunca te lembras de ninguém”. Bebeste um copo de água antes de te deitares e de beijares o ombro da tua mulher.
Dias mais tarde, vais com a tua mulher a uma festa em casa de uns amigos. Há gente que conheces, gente que não conheces e, muito provavelmente, gente que já nem te lembras que conheces. Sorris à tua mulher. Reparas em alguém lá ao fundo da sala. Uma mulher mais nova que tu num vestido leve e decotado. Reparas que tem curvas. E cabelo encaracolado. Ela vê-te. A tua mulher também te está a ver. Está a ver-vos aos dois. A outra mulher sorri-te e acena-te. Oh, ela conhece-te. Sorris de volta, tentas compreender e pensas “Aaaaahhhhhhh… Então ESTA é que é a Ana Filipa!... Jesus Cristíssimo!...” E sorris à tua mulher que está ao teu lado. Mas ela nem olha para ti. Ignora-te. Barras um pouco de paté na mini-tosta. Dás um gole no Martini. Dizes “aquela lá ao fundo é que é a Ana Filipa, não é? Já me recordo, sim… Sim, é, de facto, bonita.” A tua mulher finge que não te ouve. Está a comer um camarão e a beber. Preferiu vinho verde. Olhas de novo para Ana Filipa. Sentes angústia. Há qualquer coisa de injusto nestas situações.
A caminho de casa, a tua mulher faz o resumo e o balanço da noite. Tu estás concentrado num fio de um pimento padrón que ainda tens preso entre os molares. Dizes “sim, sim”. Ouve-la dizer, lá pelo meio, “ai, ela é tão convencida” e continuas a tua luta com o fio e dizes “a-ham”. E depois ouves “meu Deus, ela é tão bimba” e consegues finalmente tirar o fio de entre os dentes e dizes “pois, imagino”.

3 Comments:

Blogger Patife said...

Just perfect. Just fucking perfect. ;)

3:49 da tarde  
Blogger Unknown said...

então é isto que vos passa na cabecinha? muito bom.

3:43 da tarde  
Blogger M. said...

isto elucida.me.
e este canto nunca deixa de ser mais que bom mesmo que a blogosfera morra de vez.

12:44 da manhã  

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