quarta-feira, novembro 13, 2013

Poemas de um Outono Mais-ou-Menos Futuro #1

é uma cidade de mortos
de ausências
as pessoas vão faltando
sobram poucas para caminhar
pelas ruas
pelas estações de metro ou
pelas estações do ano
é tudo outono
e está tudo errado
as ruas estão quase vazias
eu estou escondido
abrigo-me onde posso
não me mexo muito

é uma cidade de gangues
sangue novo atrás do sangue
só pelo sangue
pouco lhes sobra para matar
está quase tudo morto
e eles ficam desorientados
apontam nem sabem para onde
apontam nem sabem porquê
ameaçam nem sabem quem
nem por que motivo

é uma terra de abandonados
dantes andávamos todos à solta
depois fomos ficando prisioneiros
e com medo
e depois fomos ficando fechados
e depois escondidos
e depois vieram e mataram alguns
foram matando mais e mais
sobrámos nós
mas somos poucos
somos fracos
somos perseguidos
não estamos prontos
e só não somos apanhados porque eles são muito estúpidos
temos alguma sorte

mudaram-nos o mundo e acabaram com ele
o paradigma do poder
que estava preso com ganchos de cabelo
trancados em fios de seda
caiu
como se esperava
ou como esperava quem pensou no assunto
- nem toda a gente quis saber do assunto

no princípio
mandava quem tinha a força
depois, mandou quem tinha a força e a habilidade
juntou-se-lhe a inteligência
a estratégia, o discurso, a astúcia
e outros ingredientes se foram juntando
até que nasceram gerações de líderes
que o foram só por terem sido gerados por líderes anteriores
e formaram-se novas tribos de gente que gostava de liderar
mesmo sem saber porquê
e de ter filhos que pudessem liderar
mesmo que não soubessem como
e foi tudo liderando
todos em conjunto
corporativamente liderando
até deixarem de fazer sentido

então
alguém com força e sem medo
naturalmente mas não legitimamente líder
decidiu começar a matar os outros

como era fácil
continuou

como era forte
ganhou poder e seguidores
que começaram a matar por ele
ora em nome dele
ora para que eles próprios não fossem os próximos
- a lealdade é três porções de medo, duas de astúcia e nenhuma de amor
não há espaço para o amor
quando se tem medo

e agora a vida é isto
e vivo-a como aconselham nos filmes:
«cada dia como se fosse o último»

mas o último dia não é um dia bom
é o dia mais assustador de todos
o dia em que se vislumbra a treva infinita
só na imaginação
antecipando todo o futuro feito de nada
como a queda mitológica do homem que nunca baterá no fundo
e cairá para sempre

e mais sempre

e outro sempre

sempre, todos os dias
todos os anos
todos os séculos
todos os milénios
todos os universos
e gigauniversos e metauniversos
segundo por segundo
um atrás do outro
nem devagar nem depressa
sempre
até nunca mais
porque o nosso fim acontece uma vez só e nunca mais acaba

nunca quis que cada um dos meus dias fosse o meu último dia
está tudo ao contrário
eu só queria viver cada dia
como se fosse o primeiro
com pleno direito a todo o espanto
e sem saber de mais nada

é uma cidade de ruínas ainda de pé
à espera de ir caindo
à espera das heras
das silvas
e dos cogumelos
do musgo a vincar o norte e a sombra

e nós
cada um na sua toca
como bichos estúpidos
usamos a defesa que temos
que é a ausência:
não estando lá, ninguém nos pode fazer mal
não ali
não àquela hora

aguardamos com paciência e alguma angústia
que os novos poderosos
na desorientação de quem não sabe mais o que fazer
nem a quem apontar
acabem por matar-se uns aos outros

e só não desejamos que isso aconteça
porque é moralmente inadmissível
mesmo quando não resta quem nos vigie e fiscalize a moral