quinta-feira, janeiro 17, 2008

Tarantino e o Cobarde Robert Ford

O que têm em comum À Prova de Morte e O Assassinato de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford? Absolutamente nada. Daí que seja tão fácil compará-los e estabelecer as diferenças aos mais variados níveis. Começando pelo contexto em que os vi: o primeiro, em casa, em DVD; o segundo, no cinema.
Enquanto no caso do (...) Cobarde Robert Ford - sim, porque o filme não é tanto sobre a lenda Jesse James quanto sobre o processo que conduziu ao seu (inevitável?) homicídio - o espectador deve preparar-se para assistir a uma longa narrativa, recheada de pausas e contemplações, até se chegar a um desenlace que já é conhecido à partida, em À Prova de Morte o mesmo espectador deve abastecer-se com pipocas, Coca-Cola e uma enorme vontade de não pensar. Um filme é a história para além da imagem, o outro é a imagem, sem história, apenas acontecimentos em catadupa. Isto faz de Cobarde Robert Ford melhor do que À Prova de Morte? Não o creio. Até porque um filme deve ser avaliado levando em conta o objectivo a que se propõe. E, nesse aspecto, Tarantino atira-se explícita e inequivocamente ao revivalismo do género grindhouse, saindo-se bastante bem. Se olharmos para À Prova de Morte no panorama "Tarantino", será, sem dúvida, uma obra menor. Mas se contextualizarmos a obra levando em conta o que o seu autor pretendia inicialmente, então estamos perante aquilo a que se chama "um g'anda filme": entretém, tem ritmo e tem, sobretudo, os (bons) tiques que distinguem Tarantino dos demais: excelente gosto estético, grande banda sonora e, imagine-se isto num grindhouse movie, aqui e ali, diálogos de grande nível. Já para não falar na coolness típica dos filmes do autor, em que cada personagem, tal como cada par de botas ou cada acender cigarro, é pejada de estilo, de carácter vincado que transborda até ao ecrã, de personalidade a deitar pelos poros, pelos cabelos, pelos gestos, pelo mascar de uma pastilha. Temos ainda a mestria com que é filmado - os ângulos, a velocidade, as pausas estritamente necessárias à ambiência (porque não se pode falar em adensamento do enredo, quando o enredo é um palito...), à introdução do espectador ao objecto que, dentro de instantes, irá contemplar. Este virtuosismo ganha tanto mais quanto menos é pretensioso. Três estrelas (*** de 0 a 5) para À Prova de Morte.
Voltemos ao Cobarde Robert Ford. Tenho a dizer, antes de tudo, que Casey Affleck vale cada minuto da fita. É genial, mas um genial tão detestável que faz com que maus da fita como Kevin Spacey, em Os Suspeitos do Costume, ou Edward Norton, em A Raiz do Medo, pareçam gente pouco séria. Começa por nos fazer sentir um profundo desprezo pela sua personalidade fraca, que é agravada pela sua latente ambição desmedida. Mas um desprezo que chega ao ponto de se transformar em pena. Nesta fase, Jesse James é, sem dúvida, o seu ídolo ou até mesmo a sua paixão platónica. Mas, aos poucos, a sua paixão platónica passa a ser o seu objectivo ("Tu queres ser como eu ou queres ser eu?", atira Jesse James a certa altura). E nesta metamorfose gradual, nem sempre bem gerida pelo realizador Andrew Dominik (a dinâmica do filme poderia ser muito melhor, bem como o desenvolvimento das personagens), Robert Ford (Affleck) vai, aos poucos, ganhando a sua própria personalidade - tão fraca quanto no início da história; mas muito mais distante do Jesse James que então imaginava. É notável a forma como o "cobarde" se transforma num ser humano - cheio de fraquezas, é certo, mas humano. O mais fácil seria matar Jesse James e fazer de Ford um ser apenas mau e fraco. Mas Affleck traz a Ford a dignidade e a humanidade que a história nunca lhe reconheceu. Do outro lado, temos Brad Pitt, em mais um excelente desempenho - embora algo sobrevalorizado em algumas apreciações. Pitt é um Jesse James em declínio, a um passo da loucura, que encontra (descobre? procura? desenterra de? inventam em?) no pobre e fraco Ford o seu maior fã e o seu natural inimigo - aqui também poderia ter divergido para um caso típico de "discípulo que quer superar o mestre", mas as rédeas são bem seguras; mais uma vez, prevalece o lado humano sobre o lado mítico. Pitt está em forma e passa ao lado do estereótipo "Pitt sex-symbol", entregando-se à pele de um homem fora de comum, mas também ele repleto de fraquezas (se calhar James e Ford não eram assim tão diferentes, no íntimo). O seu carácter é forte, o nome, que o precede em cada conversa, trá-lo sempre sob a forma de mito. Mas Jesse James (Pitt) mostra que também é homem. Talvez por isso mesmo se entregue deliberadamente à morte - duas interpretações, no mínimo: quereria tornar-se no mito definitivo ou revelar a sua humanidade e a sua fragilidade? Talvez tenha conseguido as duas coisas. A primeira, pelo menos, foi sobejamente conseguida.
De um modo geral, pode dizer-se que o filme é bom. Porém, Dominik perde-se, por vezes, em conversas inócuas e deambulações metafísicas que pouco ou nada acrescentam, ficando o trabalho de evolução das personagens praticamente entregue ao (enorme!) talento de Affleck e de Pitt. A própria duração do filme é exagerada - e para quê tantas paisagens, tantas nuvens a passar, tanta gente a fitar tantas vezes o vazio? O tempo passa, já se sabe, e a técnica acaba por não conseguir eliminar a necessidade de recorrer às legendas para situar o espectador no espaço e no tempo da acção. Ainda assim, *** para o Cobarde Robert Ford.

II Era do Restos

Para além dos esboços de contos e das experiências semi-poéticas, acrescentam-se tentativas de críticas a música, cinema e, quiçá, a televisão ou livros, juntamente com outras banalidades como dissertações sobre o quotidiano, o amor ou os flagelos que assolam o planeta. Por exemplo, o cheiro a enxofre que ontem provocou o pânico em Lisboa.