sexta-feira, março 04, 2011

O meu amigo Neil

Chegamos a certa altura da noite, depois de horas a fio a falar de música, após vários copos de vinho tinto, umas quantas minis e saladinhas de polvo e tostas de atum, a conversa resvala invariavelmente para um tema: a minha relação com a música do Neil Young. A mesa grande da Bela leva cerca de muitas pessoas, dependendo da hora a que chegamos e de quem está comigo. Mas é para cima de seis ou de oito e às vezes mais. E toda a gente gosta sempre do Neil Young e toda a gente o respeita imenso. E eu, na minha inocência, uma vez tive a ideia infeliz e descuidada de dizer que “não tenho pachorra para esse gajo” e originei uma espécie de motim. A minha cruz é, desde então, ser o alvo de toda a mesa sempre que as pessoas deixam de ter memória das conversas que já tivemos e a raiva lhes vem de novo ao de cima.
Portanto, e uma vez mais, lá estava eu, no centro de todos os ódios.
-Mas que porra, qual é o mal de eu não gostar do que o homem faz? É assim tão importante? Ele nem sabe que eu existo! Ele tem milhões de outros fãs…
-Mas tu sabes distinguir o Neil Young do Neil Diamond? Ah ah ah… - e riam todos; eles não se lembravam, dada a hora da noite, mas essa piada já tinha sido feita de todas as vezes anteriores.
-Vai-te foder…
-O Diego não sabe … Nem sabe que o gajo era guitarrista de Buffalo Springfield…
-Aqui vamos nós… .l. Vocês são do caralho, pá. Acho o gajo chato, meu. Deslarguem-me da braguilha!
-Pá e no Harvest, pá? E no Harvest? Só conheces o gajo desde os Pearl Jam… Vai ouvir o Harvest, totó…
-Read my lips: .l.
-‘Tão e sabes de onde é que vem a Sweet Home Alabama, dos Lynyrd Skynyrd? Ah, pois é… não sabes, boy, não sabes…
-Já me contaste isso pelo menos dez vezes…
A conversa continuava. Eles bombardeavam-me, provocavam-me; eu bebia minis, comia batatas fritas Saloinha e distribuía piretes de modo mais ou menos aleatório. Já não lhes levo a mal. Até sorrio e acho graça. São como crianças musicais e eu sou o seu brinquedo preferido.
O Francisco entrou com o seu longo sobretudo e um sorriso ainda mais longo. Notava-se que estava feliz e em pulgas por qualquer motivo. Por trás dele, um homem de camisa aos quadrados, calças de ganga e chapéu de cowboy. Patilhas longas. Cabelos grisalhos, quase pelos ombros. De rosto, uma mistura entre David Carradine e Billy Bob Thorton. Mas em feio.
O Francisco aproximou-se da mesa e fez sinal ao tipo.
-Neil, come here please. There’s someone I’d like you to meet.
O homem chegou-se. Fez-se silêncio. Pousei a minha cerveja e levantei ligeiramente o sobrolho.
-Só podes ‘tar a gozar…
-Neil, this is the people… and that one over there is Diego, the guy I told you about.
-Hy people! – e, olhando para mim, rindo e estendendo-me a mão, enquanto com a esquerda tirava o chapéu, como um cavalheiro perante uma senhora – And… hello Diego. It’s very nice to meet you.
-Tu só podes ‘tar a gozar comigo, caralho! – isto, dizia eu ao Francisco, enquanto cumprimentava o velhote.
Sentaram-se. Passámos a ser uns onze ou catorze à mesa. O Francisco chamou a Bela para pedir bebida.
-What’chyou gonna have, Neil?
-Ehrm… do you got some salsaparila?
A Bela também levantou o sobrolho, interrogativa.
-Pergunta se tem salsaparrilha – traduziu o Francisco.
-Eu percebi! Só estou incrédula… ‘Tá a gozar?! We got wines, mister! Wine. And beer. Choose.
-Oh… then arhhhm… I guess I’ll have a beer.
-Sagres?
-No… - olhou para mim e sorriu, com gozo – I’m from up North, you know. I’ll have a… Super Bock.
Não me conformava. Não me conformava!
-Mas que puta de ideia, Francisco… Mas que puta de i-d-e-i-a! Bela, traga-me mais uma, fáxavor. Daquelas minis das gordinhas, se ainda houver. Sagres, claro!
-Eu sei, menino Diego, eu sei…
E então ele virou-se para mim. Ia claramente dizer qualquer coisa. Mas, antes de falar, fez questão de me olhar bem nos olhos. Como se me estudasse. Como se me quisesse intimidar.
-So… I heard you’re a musician too…
-Ya.
Riu-se. Eu continuei a comer o milho tostado e os amendoins salgados. Toda a gente estava calada. Toda a gente queria ouvir. Ele sorriu antes de recomeçar. Levou um amendoim à boca e continuou
-So… and I heard you don’t like me…
Olhei para o Francisco com alguma raiva. Olhei para os restantes. Todos sorriam como quem diz “bem feito!”.
-How could I “not like you”?... I don’t even know you. Met three seconds ago.
Ele sorriu de novo.
-You don’t like my songs.
-Well… you might say that. Though probably it’s a bit exaggerated… I just find them… you know… boring.
-Oh… that’s a lot fuckin’ better… Thank you! Thank you, Diego…
-I didn’t mean to offend you, ok? – interrompeu-me, brusco.
-You ain’t much of a songwriter yourself, if I may say… Neither a singer. And you’re for sure a fuckin’ lousy guitar player – maybe you should practice in Guitar Hero.
Disse isto e olhou para o Francisco e para todos os outros e toda a gente riu bastante. E eu olhei para ele e para todos os outros e não sabia o que havia de dizer.
-Me it’s more about… it’s the lyrics, man. You should learn Portuguese. My thing is the lyrics. Better than yours, that’s for sure… You should write in Chinese, at least people wouldn’t understand it…
Acho que neste ponto, quando acabei de dizer isto, houve quem parasse de respirar.
-Aqui tem a Sagres, menino Diego. And your Super Bock.
-Obrigado, Bela. Pessoal, está a ser um bocadinho muito bom. Mas vou até à Típica. A ver se o Paulo mete uns clássicos do rock. É o que me apetece ouvir.
Já me levantava e vestia o casaco. Felizmente, as minis não têm retorno. Dão para levar para a rua. E diz ele para o Francisco
-Where’s he going? What did he say?
-He’s going up there to another bar… he wants to listen to some rock n’ roll classics.
-Well, you little motherfucker… I’M a funckin’ rock n’ roll classic! ME! I’m here!
E virou-se para o Márcio. Aparentemente, o Márcio também estava combinado. Tinha levado a guitarra. Passou-lha e ele já se preparava para tocar.
-Também tu, Márcio?
Confesso que me senti magoado. Todos contra mim; ninguém para me apoiar. Decidi sair na mesma. Eu estava visivelmente agastado, claro. Até porque toda a gente sorria. De alguma forma, todos se sentiam vitoriosos. Vingados.
-I’m sorry, I’m not gonna listen to you…
-Please, stay. I’d like you to stay.
-I’m sorry, Mr. Young. I think we won’t manage to be friends, ever…
-Oh, no Diego… I AAMMM sorry… I don’t want to be friends with you. And for sure I didn’t mean to upset you!
E riu-se. E todos se riram. Riram com vontade. Senti-me gozado. Saí. Saí com pressa, como se fugisse. Nem paguei, pago depois. Pago logo, pago amanhã. Pago quando o Neil Young não estiver ali a assombrar-me. Acelerei o passo e subi a rua. Queria chegar à Típica o mais rapidamente possível. Quando estava a chegar, alguém gritou
-Hey, Die-go! Hy… wait!
Oh não. Era ele. E vinha em direcção a mim, num trote ligeiro, como quem tem alguma pressa. Parei e esperei por ele. Chegou e pôs-me a mão no ombro.
-Look… we could be friends.
-…
-Seriously. I was just pretending back there. Eu até falo português, dude. Eles é que não sabem. Coitados… não lhes quis destruir a fantasia.
Fiquei confuso. Ele continuou.
-Look, eu forcei a tua saída… to tell you the truth, estou tão farto das minhas músicas como tu. Já não me posso ouvir, man! Really! Queria tudo menos ter de tocar outra vez that fuckin’ shit do rockin in a free world e outras que tais, dude. Eu só queria vir contigo. May I?
-Well… sure. I guess.
E fomos. Bebemos cervejas. Ele manteve-se fiel à Super Bock. E eu à Sagres. E conversámos. Conversámos muito. Ele é boa pessoa. Atento, bem-disposto, mordaz. Tem sentido de humor. À porta, enquanto fumávamos, disse
-Still, I was telling the truth about you’re songs… you suck, dude.
-It’s songs for the ladies, baby. You’re not a lady. Bitch…
E rimos muito e brindámos.

terça-feira, março 01, 2011

O cacto

O meu plano era francamente simples: chegado ao jardim de Santa Clara, sentava-me na relva, sacava da minha pá de jardineiro – na verdade, era uma pá de plástico que eu tinha comprado num bazar chinês, daquelas com que as crianças brincam na praia -, escavava um pouco, guardava a terra num saco plástico, enfiava o saco na mochila, metia a mochila às costas; a seguir, pegava em mim e bebia um café no quiosque e depois seguia a minha vida, regressando a casa. Sem dar nas vistas.
A simplicidade de certos planos é absolutamente subestimada por determinadas pessoas. Nomeadamente, pessoas agentes da autoridade. Uma dessas pessoas aproximou-se de mim enquanto eu, pueril, escavava com esforço o meu buraquinho para de lá extrair uns míseros 300 ou 400 gramas de húmus, terra fértil constantemente presenteada pelos cães da vizinhança e pelas folhas que caem das árvores em certas estações do ano, às vezes. Cheirava a xixi. “Bom dia” e eu ergui, surpreendido, o olhar e respondi “bom dia” com humildade e sem qualquer intenção “o que é que o senhor pensa que está a fazer?”. Parei de escavar. Na verdade, fui apanhado de surpresa. Hesitei um pouco “estava aqui a tirar um bocadinho de terra…eu…”
- Mas o senhor sabe que esta terra é propriedade pública…
- Isso é… uma pergunta?
- Não senhor, é uma afirmação. Sabe, não sabe?
- Julgo que sim… mas olhe, é só um bocadinho (e levantei o saco, para provar que não estava a ser sôfrego nem, tão pouco, era minha intenção empobrecer a propriedade pública).
- Pois então, se o senhor sabe, devia saber que não é permitido subtrair terra do espaço público…
- Mas é proibido?
- Não é permitido.
- E adicionar?
- Desculpe?!
- Adicionar terra ao espaço público. É permitido?
- (Coçando a cabeça, por debaixo do boné) Ora… eu estou em crer que proibido não é. A não ser que estejamos a falar de uma grande quantidade de entulho, não é? – acrescentou bem-disposto, com pronúncia beirã, sorrindo quase a rir em seguida. – Agora, subtrair é que não pode. Propriedade pública é a propriedade de todos nós… ora não é?
- Mas, senhor agente, este bocadinho que aqui levo deve ser menos do que a parte que me caberia se a gente dividisse a propriedade pública por todos. (Levantei novamente o saco, mostrando o meu pequeno quinhão).
- E, vamos lá a saber, para que é que o senhor quer isso?
- Sabe, é que eu comprei um cacto, um daqueles minúsculos, no supermercado. E aquilo vem num vaso que é muito pequenino, em plástico, quase nem terra tem. E eu desconfio que se eu não mudo o cacto de vaso, nem o bicho me cresce, nem conseguirá sobreviver, se calhar. Aquilo é tão pequenino, o vaso… Pouco mais que uma xícara de café.
- Um cacto… hum…
- E eu entretanto lembrei-me que podia mudá-lo para um recipiente novo que eu inventei. Peguei numa daquelas embalagens de sumo de laranja de litro e meio, também do supermercado, e cortei-a sensivelmente ao meio.
- Sensivelmente?
- Sim, para não magoar… Depois fiz-lhe um furinho cá em baixo
- … sensivelmente?...
- Pois claro… que é para a água escoar. Que eu vi, lembro-me que os vasos lá em casa da minha avó, quando eu era miúdo, tinham todos um buraquinho. E eu quero fazer as coisas com perfeição. Com rigor.
- É verdade. Buraquinho. Confere.
- E agora tenho tudo a postos para fazer a trasladação do pequeno cacto. Porém, a terra que vinha dentro do tal vaso do tamanho de uma xícara mal chega para tapar o buraquinho da metade do pacote de sumo de laranja de meio litro do supermercado.
- Pois, imagino…
- E então lembrei-me “por que não subtrair um pouco de húmus do jardim de Santa Clara?”.
- Estou a ver…
- E cá estou. E agora o senhor diz-me que é proibido…
- … não é permitido…
- … não é permitido eu levar daqui um bocadinho de terra.
O agente fez uma pausa. Devia ter os seus cinquenta anos, ou perto. Não era gordo, mas era robusto. De média estatura, a puxar para o alto. Tinha ar de homem de família. Muito português, indubitavelmente português: entre o moreno e o rosado, com o rosto invadido pela barba cerrada que o escurecia, apesar de desfeita seguramente nessa mesma manhã.
- Como é que se chama o cacto?
O meu cacto não tinha nome. Por momentos, o meu cérebro enregelou: ali estava, diante de mim, a grande oportunidade de conseguir a minha pequena porção de terra pública que salvasse o meu pequeno cacto. Bastava-me escolher agora um nome simpático para o senhor agente. Algo que o tocasse.
- Marília.
Sem pudor, tentei acertar-lhe no nome da mulher.
- Marília?!
- Sim… é uma cacta.
Os meus olhos reluziam de esperança.
- Leve lá daqui isso e… cumprimentos à Marília.
Piscou o olho, sorriu e virou costas.
- Gostou do nome? - perguntei, sorridente, ainda sentado no chão. Mas acho que ele não me ouviu.