sexta-feira, outubro 23, 2009

A Coitadinha

(A noite passada, eu tive este sonho.)

-Coitadinha sou eu, há mais de dez anos, fechada dentro desta cabeça e destas paredes.
-Would you please take your unfortunate and miserable reality the fuck out’a here?
-Coitadinha sou eu, há mais de dez anos, fechada dentro desta cabeça e destas paredes.

(E, repetindo a frase como que rezando, assim se foi A Coitadinha, trôpega e alheada, por entre os pinheiros, devagarinho. E eu senti a mais dolorosa compaixão por aquela mulher de cabelo amassado, a reclamar um banho que há muito que tarda, de olhar azul e ausente, enlouquecida, vestindo uma bata de mulher do campo por cima das outras roupas e calçando uns botins de borracha encarnados. E o homem, um homem enorme e desconhecido, que estava comigo, de olhos lacrimosos e voz embargada, “you shall never, ever, pity her... it’s even worse”.)

quarta-feira, outubro 21, 2009

Uma Vida a Dois

Eram daquelas pessoas que faziam muitos planos. Desde sempre e desde o mais pequeno detalhe. As coisas planeavam-se com minúcia, com rigor e com intenção de cumprir. Faziam planos e guardavam segredos. Eram pessoas herméticas e rigorosas, portanto. Este texto não é para ser lido nem interpretado. Estou apenas a juntar notas sobre combinações potencialmente trágicas para um pequeno conto sobre pessoas que gostam uma da outra e que vão ter um final inevitavelmente infeliz. Há personagens cujo fado é incontornável. Nasceram para estar erradas. Estas duas são um pouco diferentes. Erradas, erradas não estão. O que é que, na conjugação, matemática e metafisicamente, a equação humana dá erro. Do tipo, e estamos no campo das suposições: ele planeava a meias com ela percorrer as estradas desertas do Sul de Espanha, como nos filmes de estrada americanos. Queriam um carro descapotável, um chapéu de caubói, um auto-rádio com leitor de CD’s, para poderem ter uma banda sonora à Tarantino ou à Sergio Leone. Levavam notas à solta num saco desportivo para pagarem a estadia em motéis de beira da estrada. Uma máquina fotográfica digital e uma lomo fish-eye, para registarem a severidade do deserto agreste. Eles chamavam-lhe “solenidade” - havia ali qualquer coisa de impor respeito. E levavam mapas, vários mapas. Um caderninho com nomes de estalagens. Um violão, uma faca de mato e um pequeno revólver, para eventuais necessidades de resolver imprevistos. E uma pá no porta-bagagens. A pá é fundamental. Tudo isto, planeado e anotado entre os dois.
Porém, em segredo, ele planeava levá-la até, por exemplo, El Choro (que é para enfatizar o dramatismo) e, uma vez chegado, negociar com os ciganos locais. Negociar o quê? Negociá-la a ela. Ela, para o efeito, deve ter atributos físicos de notar à primeira vista. Não pode ser feia, não pode ser gorda. Tem que ter pinta. Em segredo, ele trocara já telefonemas (a partir de um telefone público) e fizera envio de diversas fotos actualizadas dela. O acordo estava firmado. O preço estabelecido levava muitos zeros e eu não posso agora gastar caractéres. No acordo entrelia-se “fazem com ela o que quiserem; podem cortá-la aos bocadinhos e fazer paelha, se vos aprouver”.
Mas, ela, por seu lado, planeava, também nos seus segredos, um projecto de vida diferente daquele que ambos haviam sonhado ao longo de meses e meses, sempre tomando notas e verificando mapas e organizando extractos de conta e comprando chapéus e CD’s de canções à caubói. Na verdade, ela não era mulher de um homem só. Viajada nos tempos de juventude, deixara em muito sítio o seu perfume e cicatrizes. Mas cicatrizes também ela as trazia. E uma delas fora feita em Almería. Por um gitano de nome Paco. Que dançava flamenco. E cantava com voz grossa e muito alta e batia palmas. Ela trocara com Paco alguns telefonemas. Ela também ia à cabine telefónica – mas ia a outra, para não se cruzar com ele. E é este o encanto do casal. De tão rigorosos e espertos que eram, sabiam há muito um do outro que se guardavam segredos. E sabiam, um do outro, que o outro também sabia disso. Nunca, porém, haviam tocado no assunto. Mantinham-no em segredo. Portanto, e por cautela – vá lá, também por respeito e, quiçá, para manter ilusões -, faziam questão de ir à rua “só fazer uma coisa”, à mesma hora, mas em pontos opostos do quarteirão. É de notar que ambos suspeitavam, ambos temiam, ambos tinham maus pressentimentos. Mas, diz o povo, “quem não tem telhados de vidro que atire a primeira pedra” (isto na Bíblia não era nada assim, não havia telhados de vidro). Nenhum deles se atrevia a acusar ou a tirar dos segredos a suspeita. Ela enviara a Paco o seguinte, no último envelope: sete fotografias dele (tipo passe, meio corpo, corpo inteiro, perfil, etc.), todas actualizadas; um mapa itinerário; um “plano B” que passava por Sevilha; 250 euros para comprar a pistola (o revólver ia sempre no cinto dele); e uma pequena nota onde se lia “a pá levamos nós... te quiero, gitano”.
Chegou o dia, a viagem começou. Pararam um pouco dpois de Badajoz, numa bomba de gsaolina de beira de estrada, daquelas estações de serviço desertas onde param camionistas para dormir a sesta. Ela foi à casa-de-banho (fugiu pela janela e correu correu correu até que saltou para dentro de uma camioneta carregada de fruta e aí se instalou, entre maçãs e pêssegos; a camioneta ia para Mérida). Ele ia “só fumar um cigarro, enquanto esperava” (assim que ela saiu, largou o carro e apanhou boleia na direcção contrária; a boleia foi oferecida por um casal de emigrantes portugueses na Suíça – aliás, ele era português; ela era suíça – que, em Madrid, se confundiram com as direcções e, como não encontraram a tabuleta que dizia Vilar Formoso, vieram andando andando andando... como estavam cá em baixo, iam aproveitar para conhecer Lisboa e ver a Expo; ele saiu em Elvas, agradecido e aliviado).

quarta-feira, outubro 14, 2009

Diálogo cardíaco

-O meu coração é um anormal sem cérebro.
-Hum... onde é que queres chegar? Não estou a receber a fotografia...
-Ãhn?!
-Not getting the... esquece. Continua. O teu coração...
-... é desmiolado. É um inconsequente. Enquanto me encanto através do cérebro, a coisa vai bem. Medem-se as qualidades, apreciam-se os traços. Enfim, uma pessoa até sente que amar é humano. Agora, quando desce para o coração, está o caldo entornado.
-Estás apaixonado.
-Eu, não. Ele é que está. É palpitações, é desejos, é apertos, é suspiros...
-Mas isso é bom. O teu coração é o teu lado emocional. É a pureza.
-O meu coração é o aviso! Quando dispara, significa: perigo! Cuidado! É um palerma.
-Que palerma? Olha, para um músculo carnudo, é até bem esperto. Controla ventrículos, tráfegos de veias e artérias, pulsa com cadência, aumenta ou diminui o ritmo consoante a dinâmica da situação. O teu coração é um maestro.
-E também tenho arritmias.

segunda-feira, outubro 12, 2009

De faca e garfo

Segurar na alma é como segurar num garfo. Há regras para manuseá-lo, mas eu, que nunca tive etiqueta, nunca sei quais são os modos correctos. Também nunca sei a que me vai saber aquilo que vem lá na ponta. O que me salva é a faca. Que corta. Cortar é bom. Desfazer as coisas, dividi-las em pedaços, torná-las pequenas, mastigáveis, assimiláveis, digeríveis.
Às vezes o garfo parece escorregar das mãos. Não querer lá estar. Não querer ser arma de caça para o que pretendo trespassar de um só golpe, não querer ser cúmplice da faca dilacerante, não querer fazer daquele gajo possante que agarra no outro pobre que vai levar socos no estômago sem poder ripostar. Até sangrar. Por dentro e pela boca, também.
Às vezes isso da alma é um objecto que escorrega e me sai das mãos. E depois fico a pensar “ai, se aquilo me cai e se estraga tudo” e o pior é se aquilo cai e, sem que se estrague, já fica fora de mim, ali longe. E nem com um garfo a apanho. E depois? A alma, quando cai, já não se lhe pega. É como a vida. Passa uma vez e puff. O resto são memórias e expectativas por concretizar.