terça-feira, maio 30, 2006

A frase que estava naquela parede

"Espíritos matavam mais de 200 pessoas por noite". Era assim que estava escrito, em letras grandes, ao estilo das palavras de ordem que outrora decoravam as paredes de Lisboa. Ele leu e agitou-se. Por um lado, ficou intrigado. Que raio quereriam dizer com aquilo? Espíritos a matar pessoas assim, todas as noites, em quantidades tão grandes? Por outro lado, ficou um pouco assustado. Será que os espíritos também atacavam naquela zona da cidade? E a qualquer hora da noite, indiscriminadamente? Este último pensamento ele não se limitou a pensá-lo. Foi de tal ordem perturbador que o disse baixinho. Ao aperceber-se de que falava entre dentes consigo mesmo, sorriu, um pouco envergonhado. Mas quais espíritos? Que disparate... Não deixou, no entanto, de acrescentar um quase inaudível "espero que não", em jeito de piada. Mas também com o seu quê de prece.
Continuou. A noite estava quente. Abafada. Parecia que o ar nem se mexia. E, apesar de estar junto ao rio, respirava-se um ar seco. Enquanto caminhava em direcção ao bar, encaminhava também os pensamentos: que se lixem os espíritos assassinos. Pensou em Raquel. Como estaria vestida? Uma saia, um vestido leve. Um decote. Ó sim, por favor, um belo top decotado e, de preferência, que o peito se revelasse apertado. Como se estivesse espartilhado. E não era difícil espartilhar as mamas de Raquel.
Entrou, procurou por ela. Estaria atrasada. Típico de Raquel. Mulher caprichosa. Sentou-se ao balcão, pediu uma caipirinha. O barman serviu-o. Parou, olhou-o e perguntou-lhe "sente-se bem?". E ele respondeu que sim. "É que está muito pálido". Encolheu os ombros. Que chatice. Estar com mau aspecto logo no dia em que Raquel aceitara finalmente o convite. E o convite fora arrojado. Para não dizer descarado. Portanto, Raquel, se sabia ao que ia e se aceitara o convite... é só juntar dois mais dois. "Neste caso, um mais uma". Sorriu com a sua própria piada. Fumou um cigarro. Ou, melhor, acendeu o cigarro e foi fumando. E bebendo a caipirinha. O barman aproximou-se. "Senhor, tem a certeza que se está a sentir bem?" e ele que sim, que tinha, estava de perfeita saúde. "É que... desculpe insistir, mas tem um pouco de... sangue... aí, no nariz". Levou o lenço de papel ao nariz e, de facto, confirmava-se. Sangue. Mas que diabo... O seu pensamento parou, então, por instantes. Na sua cabeça só existia aquela frase. Levantou-se, foi lavar a cara, tentar compor-se. Olhou-se ao espelho. O aspecto não era o melhor. Voltou ao balcão.
Pediu mais uma caipirinha.
-Ouça - dirigia-se ao barman. Sabe alguma coisa sobre a frase que está naquela parede?
-Qual frase?
-Bom, isto pode parecer uma coisa um pouco tola...
-Nunca lá vi frase nenhuma.
-A sério?! É um escrito grande... Diz "espíritos matavam mais de 200 pessoas por noite". Assim, só isto.
O empregado pareceu um pouco incrédulo.
-Nunca vi isso...
-É... é estranha, não é? Por que raio iria alguém escrever uma coisa destas?
-Só se for um maluquinho.
Dito isto, o barman riu-se e continuou o seu trabalho.
Ficava tarde. Acumulava já quatro copos de caipirinha à sua frente. O empregado já levantara dois. Raquel não chegava. Decidiu ir-se embora. Pagou e levantou-se. "Puta que pariu a Raquel... mulheres..." Não era fácil manter-se direito. Fez um esforço. Saiu. No caminho de regresso, antes de procurar um táxi, decidiu passar novamente pela parede. Leu a frase outra vez. "Os espíritos não existem". Deu um salto para trás. Esfregou os olhos e tentou ler uma vez mais "Os espíritos não existem", insistia a parede. Assustado e confuso decidiu caminhar um pouco antes de ir para casa. O seu coração batia de uma maneira completamente louca, num ritmo frenético e descompassado. Precisava de se acalmar. De Raquel nunca mais ninguém soube.

sexta-feira, maio 26, 2006

O luto

Todos foram passando pela cadeira. Ali, à mesa comigo. Primeiro o pai, desgostoso. Depois a mãe, desesperada. Por fim, a irmã, ainda incrédula. E eu ouvia. Às vezes chorava um pouco. Outras vezes embargava-se-me a voz. Tinha dificuldade em falar. Talvez não me apetecesse falar, simplesmente. Queria que se fossem embora mas em vez de lhes dizer isso, não, ficava a ouvi-los, a amparar-lhes as dores. Que iriam sentir tanto a falta dela, que não sei quê, que a Lurdinhas era a luz daquela casa e ainda tão nova, coitadinha, todo um coro imenso de choros, uma lista infinita de lamentações, tristezas profundas, desabafos fúnebres. E eu, que não falava, ou falava pouco, e de vez em quando chorava um bocadinho só conseguia pensar "pois eu só queria que vocês se fossem todos foder! Era eu quem a aturava há dez anos! Era eu que dormia com ela há dez anos! Era eu que me punha nela há dez anos! Ou mais! E, principalmente, fui eu quem a perdeu e que agora estou viúvo!" Verdade seja dita: o ter-lhe tapado a cara com a almofada talvez tenha contribuído para a situação.

quinta-feira, maio 25, 2006

O homem que estava sozinho

Queria casar. Comprar um carro, ir de férias, fazer filhos. Essas coisas. A idade, que não parava de avançar nem por um dia, avisava-o: aos 40, o melhor é fazer pela procriação. Não se tratava de um alarme biológico. Era mais pela dificuldade acrescida em arranjar parceira quando a testa se alonga pela cabeça dentro, quando os capilares que sobram se apresentam descolorados e frágeis, quando os abdominais outrora vincados dão lugar à protuberância arredondada de uma barriga de homem estável na vida. Ele não era estável. Nem ele nem a vida dele - ele era músico. Mas a barriga já a tinha. E os outros obstáculos também os possuía. Daí que, na sua perspectiva, o melhor fosse arranjar companhia, mesmo que fosse a de alguém de quem não gostasse particularmente. Importante era deixar descendência.
Conheceu várias mulheres. Mas isso já ele conhecia antes de tomar esta decisão. Bom, conhecia mas não se deitava com todas. Agora, nesta fase, era assim: cada uma que conhecia, cada uma que tentava embrulhar nos lençóis. Mas andava azarado: em seis meses, apenas duas lhe entraram no quarto e, destas, apenas uma chegou à actividade propriamente dita. A outra arrependeu-se a tempo. E a primeira, a tal que se lhe enfiou na cama, também acabou arrependida - mas esta já com três ou quatro minutos de atraso.
E ele desiludiu-se com a situação. Perante estes resultados, foi decidindo que tinha que tomar atitudes, mudar de vida, pôr-se melhor, recuperar o físico, quiçá, escolher um perfume adequado, usar camisas engomadas. Ou então fingir que não se passava nada e deixar-se estar. Só a ficar velho e sozinho e mais nada. Quando pensou nisto, não gostou da ideia, achou que era pouco e que era triste. Então, decidiu também voltar a fumar.

terça-feira, maio 23, 2006

O contador do senúquer

Que o gajo estava inspirado e que lhe deu "assim, de esguelha e ela vai, trau trau trau, três tabelas e lá dentro, no buraco do meio, parecia que a sacana da bola até abanava as ancas". Foi desta maneira que mo contaram. E não me admira que assim tenha sido. Ele no senúquer era mestre. Senúquer e imperiais. É certo que treinava muito. Pelo menos três noites por semana... E que "metia a bola", sempre com classe e arrojo, "e depois sorria, dava um gole na imperial, inchava o peito". E o outro "anda lá com isso, que isto está a contar". O contador não pára para a gente se envaidecer. Ele sorria, ele alongava os gestos, ele beberricava a cerveja, pensava, repensava, olhava os ângulos, imaginava a força e, uma vez a postos, tuca. E a bola lá dentro. "Uma maravilha, não falhava uma". E o outro já não estava a apreciar a brincadeira. O outro começou por morder os lábios, às tantas já fincava as unhas de uns dedos nos dedos vizinhos num jogo de mãos esquisito e porventura doloroso. Quando a impaciência e o mau perder já atingiam o limite, rangia os dentes. "Estás a travar?" perguntava ele. E o outro rangia ainda mais, nervosinho. Certa jogada, já a derrota do outro ia pesada, estava o mestre a concentrar-se: apontava pacientemente à procura do ponto certo; o taco deslizava suave e leve, só a testar, em busca da medida certa para a velocidade e para a força; olhava as tabelas, não fosse uma solução melhor estar a escapar-lhe. E o outro, pela primeira vez durante a noite, sorriu. Depois falou. "Tanta vaidade... tanta alegria... tanta fleuma... tudo por causa de um jogo". O taco abrandou o movimento, o olhar soergueu-se um pouco e deteve-se na expressão do outro, a ouvi-lo. O outro calou-se. Ele sorriu. Voltava a preparar a tacada. E o outro "mas a tua vida... ai ai, se tu soubesses...". E ele pumba. A tacada saiu-lhe num impulso estranho, a bola aos trambolhões, tudo desajeitado. Parecia que tinha explodido - não de raiva mas de desorientação. "Se eu soubesse o quê, pá?" Inquiriu em voz grossa. Enquanto o jogo se desmoronava ele não pensava em mais nada. Ainda a bola branca não entrara no buraco do canto e já ele fazia contas de cabeça: seria a mulher? Pois claro, só podia ser, andava a ser enganado. Aquela cabra! Não, espera... podia ser outra coisa. Haveria alguém doente na família? Ou dinheiro, alguma dívida... alguém que andasse falar mal pelas costas. Alguma coisa que lhe estivesse a escapar. Nahh... uma coisa destas só pode ser mulher. Com quem seria? "Diz lá, cabrão, o que é que eu devia saber que não sei?" E o jogo todo espalhado sobre a mesa, todo desarrumado - logo o dele, que costumava ser tão metódico, lógico, quase simples. E o outro, encolhido e engolindo em seco "saca bola que isto está a contar".

segunda-feira, maio 22, 2006

O homem que comprava cigarros

A situação repetia-se: poucos minutos antes do jantar, ele chegava perto dela, que cozinhava, e dizia-lhe "olha, vou comprar cigarros". Ela não gostava disso. Estremecia. Ficava nervosa, às vezes agarrava o cabo da colher de pau com mais força, como se o apertasse de raiva. Ou de medo. É difícil distinguir. Isto são coisas que se dizem, carecem de documentação ou comprovativo científico. Mas o certo é que o povo conta muitas histórias de gente que foi comprar cigarros e não voltou. Ela tinha medo que a sua história se tornasse em mais uma dessas que engordam os mitos e que um dia a vizinhança dissesse nas suas costas "coitadinha, diz que o marido foi comprar cigarros... olha, até hoje". Mas ela ficava nervosa não era só por causa do mito e da língua comprida da vizinhança. O que pouca gente sabe é que toda esta enervação tinha também origem no trauma: quando era miúda, o seu pai saiu para comprar cigarros - como saía, todos os dias, pouco antes do jantar estar na mesa. Certa vez, o seu jantar ficou na mesa à espera, a família ficou em casa à espera, toda a gente e toda a coisa à espera, ninguém jantou nesse dia e no seguinte só comeram porque já dava fraqueza nos corpos da família inteira. Na verdade, ninguém tinha vontade de comer. O pai não aparecia. O jantar acabou por ficar para os cães. "Se calhar foi comprar cigarros mais longe", disse ela, mentindo a si própria, com dores de estar a mentir, e a tentar confortar toda a gente e a sentir-se mal por perceber que estava a falhar. O pai fora comprar cigarros à América - soube-o anos mais tarde quando recebeu um postal de Nova Jersey a dizer "Catarina, deixei de fumar". Não ficou feliz nem infeliz, mas as recordações vieram-lhe todas ao de cima e, quando casou, descobriu que ainda tinha medo dessas compras de cigarros.
"Vou comprar cigarros" atirou ele enquanto apanhava as chaves de casa da mesinha da sala. Ui. A cebola saiu-lhe cortada em fatias largueironas, os golpes foram feitos à faca mas podiam ter saído da violência afiada de uma catana. E as lágrimas vinham-lhe de três sítios: dos olhos, por causa da cebola; da garganta, por causa do choro; e do estômago, por causa do medo.
Fechou a porta do prédio e subiu um pouco a rua. O café estava fechado. Que raio? A esta hora? Caminhou mais um pouco. Lá à frente, na esquina da esquerda, havia outra tasca. Eram só mais uns metros. Olha, fechado também. Está bonito isto. "Não tarda tenho que ir comprar cigarros à América, não?" Este pensamento - ele não o sabia - vinha carregado de tragédia, já se vê. Andou mais um pouco, lá ao fundo um beco onde havia três ou quatro tascas. Em chegando, espantou-se: nas vidraças, nas portas, nas janelas, nas paredes, nos toldos, em toda a parte havia escritos "não há cigarros para ti", "tabaco só ao balcão", "fumar causa infelicidade", "fechámos mais cedo", "proibida a entrada a animais" ou "introduza a quantia certa". "Caramba", pensou. "Não há cigarros, mau presságio". E era mesmo. Ele não sabia o quanto - eu sei porque conheço o fim desta história.
Desalentado, voltou para casa. Um homem sem cigarros é um homem nervoso. E ele estava com um mau pressentimento e isso é uma coisa que agrava os nervos às pessoas. Quando meteu a chave à porta sentiu a cheiro da comida. Cheirava bem. Entrou e foi à cozinha, queria saber o que havia para o jantar. O tacho com o arroz de coelho ainda estava ao lume e em cima da bancada havia um recado escrito a dizer "Ricardo: não fui comprar cigarros. Sabes que não fumo. Beijinhos, Catarina".

sexta-feira, maio 19, 2006

Que gostava do Godard

Diz-se - e isto é sempre difícil de afirmar que sim senhor, que é verdade -, mas diz-se que, várias vezes, em conversa com vizinhos que lhe conseguiam chegar mais perto, que dizia que se sentia "como num filme francês". A primeira vez que mo contaram, não liguei. E da segunda não percebi muito bem a ideia. À terceira fiz-me curioso, pensei sobre o assunto e perguntei "mas que raio é que ele quer dizer com isso?" "então, os filmes franceses, aqueles esquisitos com histórias de amor fora do normal... e ele diz que a vida dele é assim" e eu "ah, pois". Que a vida dele era esquisita, está certo, confere. Sobre os amores, não lhos conheci, só ouvi falar. Agora, se o filme era francês - coisa que aceito, enfim - ele de certeza que fazia papel de estrangeiro: francês era coisa que ele não falava, uma palavra que fosse. Nem bonjour!

quinta-feira, maio 18, 2006

Apontamentos da vida de uma pessoa como qualquer outra

Nos comboios, gostava de ir à janela. Não gostava que lhe proibissem o fumo. E não gostava de trocar conversa com outros passageiros. Mas gostava de olhar, ainda que discretamente, os corpos, os rostos, as silhuetas, os olhos das mulheres que viajavam na sua carruagem. Especialmente aquelas que considerava "belas" ou "bonitas" ou até as apenas "giras" ou "engraçadas". Mas mesmo as outras, aquelas que classificava de "assim-assim", também essas lhe davam gozo observar. Achava que viajar de comboio era uma actividade multifacetada. Isto, embora tivesse consciência que, para algumas pessoas, viajar de comboio equivale a dormir todo o caminho. Dessas pessoas ele não gostava.

quarta-feira, maio 17, 2006

Apontamentos da vida de uma pessoa como qualquer outra

Diariamente, ia no táxi e ouvia na rádio: "11 horas, no continente e na Madeira; 10 horas nos Açores". Pensava para si "eu vivia bem era nos Açores. Ao menos não chegava tão atrasado". É factual e rigoroso: nunca chegava a horas. Nunca! E os atrasos raramente eram ligeiros ou desculpáveis. Que eu saiba, nunca encarou a possibilidade de uma mudança para os Açores de uma forma muito séria. Nasceu, cresceu e acabou por morrer em Lisboa. Viajou por alguns sítios, mas mudar-se, mudar-se, nunca se mudou.

terça-feira, maio 16, 2006

As Pessoas

I - Os pensamentos das pessoas

A verdade é que as pessoas pensam:
os humanos nascem
com sementes de perguntas na cabeça

As pessoas vão na rua
olhamos para elas
e vão de passo em passo
em escadas rolantes
em elevadores em autocarros em metros
vão de pensamento

Às vezes as pessoas trepam
até ao cume umas das outras
e param de pensar

o pensamento dos humanos
é como uma arma
difícil de arremessar

olha-se para o espelho
e pensa-se "tu és isto"
mas tu nunca és nada disto
Olha-se para o retrato
e pensa-se "eu sou assim"
e não sou
só estou a pensar que sim
sem que, no entanto,
o pensamento se arremesse
e me toque

é então que não me transformo

as pessoas permanecem assim
sem que esse "assim"
seja algum dia aquilo que elas pensam.
Depois as pessoas evoluem de assim em assim

pensam umas nas outras
e até de umas para as outras
com certezas e embaraços
mas sobretudo com distracção e despropósito

o pensamento provoca intençõees
e é daí que as coisas se fazem
as coisas como o mal
e o bem
ou as outras mais pequenas
e mais fáceis de definir

Na cabeça das pessoas
existem ideias e perguntas
e tentativas de resposta

O mundo é
no pensamento das pessoas
uma demanda obscura
uma corrida duradoura
sempre atrás de ideias correctas
chamadas respostas

Das perguntas já se sabe que eram sementes
e que brotam
das ideias sabe-se pouco
e das respostas nada se sabe
embora se pense muito nelas

há pessoas que têm sabedoria no cérebro
mas isso não faz delas sábias
porque quanto mais sabem, mais pensam.
E quanto mais se pensa
mais perguntas nascem
e uma pessoa sempre a perguntar
nunca responde a nada

pensar é hesitar perante o momento
é questionar perante a dádiva

pensar desregula a apatia.

Há pessoas que pensam no caos
e perdem tempo
a ficar inquietas

e o caos agarra nas pessoas
e come-lhes os pensamentos nas próprias cabeças
mesmo que os pensamentos não prestem

Depois as pessoas ficam muito sérias
a pensar no que lhes terá acontecido

As causas e as consequências fazem as pessoas pensar muito.
As pessoas sentam-se
e, uma vez introvertendo,
franzem os sobrolhos
e dizem "humm..."
e pensam numa causa e numa consequência qualquer

Apontamentos da vida de uma pessoa como qualquer outra

A certidão atestava: sete e quarenta e cinco da tarde, a hora da sua morte. Sabe-se que, sobre a mesa de cabeceira, ao lado da cama e do corpo prostrado, existiam balas. Não chegaram a ser usadas. A que foi usada, a tal que lhe perfurou o crânio às sete e quarenta e cinco da tarde - pelas contas do médico legista -, terminou na parede. Nem uma palavra sobre quem a disparou. Pode até ter sido o morto, mas isso é trabalho para os forenses. Da pistola, não ouvi falar. Mas devia haver uma.

segunda-feira, maio 15, 2006

A fúria da palavra

Um texto. As palavras e o trabalho de as moldar. Seguir a imagem, o som ou o cheiro na ilusão de decifrarmos uma pessoa.
Horas sobre as folhas em branco e em frente ao ecrã.
Vícios que dão balanço e superstições idiotas que bloqueiam.
Um ponto. Ou dois.
Começar e apagar. Recomeçar e riscar a folha até marcar o verso, às vezes até rasgar.
O dia em que finalmente acordo com as palavras não passa de hoje.
Esmiúço, duvido, releio antes de adormecer e logo ao acordar.
E depois da fúria sei que volta tudo ao nada.

A fuga possível

(Manifesto de Outono)

EXTERIOR. DIA. CHUVA.

Um adolescente, de mochila às costas, encharcado, corre pelo passeio do lado do rio da avenida Infante D. Henrique, em Lisboa. A corrida é frenética, veloz, decidida, obcecada. Ao fim de um certo tempo, bate à janela de um carro parado num semáforo.

SOM: Passos do adolescente, em corrida, burburinho da cidade e som de chuva, intercalados com batida cardíaca do protagonista.

INTERIOR DO CARRO. DIA. CHUVA.

Através da janela do carro, do lado do pendura, vê-se a cara do adolescente, que, num esgar de aflição, abre a boca ensaiando um inaudível grito de pânico.

FIM