sexta-feira, julho 30, 2010

Auto-biografia não autorizada (excerto)

Os carris, ferro acabado e pregado, construídos sobre um chão ao abandono, isto tudo... fui eu que fiz.
A minha máquina, o meu comboio endoidecido, ia direito, decidido, investiu contra o mundo e acabou. Acabou com um zero qualquer.
Não inventei coisa alguma. Coisa nenhuma nasceu das minhas mãos. Fui conseguindo, inconsequente, belas partidas, velas rasgadas, anatomias de um mundo bem melhor, com corações onde cabiam centrifugações. Coisas a mais.
E isto, no fundo, éramos todos animais. No fundo... éramos todos animais.

terça-feira, julho 27, 2010

Coisas que todas as pessoas deviam experimentar em casa

Via os vídeos no youtube, lia jornais sensacionalistas, acompanhava os desenvolvimentos mais profundos nas revistas para donas de casa: o meu fascínio pelo paranormal aumentava. O que mais me maravilhava era a fé inocente que aqueles magos, profetas, prestidigitadores, bruxos ou mediúnicos ostentavam, esbanjavam até. A humanidade precisa de inocência. A humanidade precisa de voltar a não ter culpa. Passamos a vida a ser educados como pecadores que um dia hão-de responder pelas suas culpas. Mas o homem nasce inocente.
Este nicho, estas pessoas de mentes aladas, passaram a constituir para mim como que uma reserva natural imune à consciência do real, do que é negativo, da falta de esperança, da certeza de um inferno. Eles, ao invés, presenteavam-me com a sua crença, a sua esperança sem sentido.
Eu observava-os a invocar anjos, a tentar mexer canetas com o pensamento, a adivinhar o fim de qualquer coisa ou um evento qualquer extraordinário. Eles confortavam-me com o seu mundo anti-depressivo. Ou, na maior parte das vezes, divertiam-me.
Aliás, no começo, eu limitava-me a achá-los engraçados e ridículos. Sem jeito, sem juízo. E isso fazia-me rir. Mas demorei pouco tempo a trocar o riso escarninho por outro riso, mais enternecido. Pouco depois, passei a sorrir complacentemente. Até que me aproximei da essência daqueles a que chamei “os salvadores”. As pessoas do paranormal. Foi então que dei por mim a ter comportamentos menos habituais.
A curiosidade levou-me a um estado de quase inveja daquelas pessoas. Mas por que é que ele consegue dobrar uma colher com o olhar e eu não? Por que é que aquela senhora é perseguida por torres de betão e a mim nem os cães me seguem? E o rapaz constantemente sequestrado por alienígenas, o que é que ele tem que eu não tenha? Comecei a sentir-me inferior. A frustração crescia em mim e emparelhava com a angústia – a angústia de não ter esperança de, um dia, vir a ter poderes. Poderes a sério.
Por mais que tentasse, a minha realidade não se transformava num limbo especial. Eu continuava a não ser especial. Tinha o meu físico e a minha mente e era com isso que tinha de contentar-me. Essa clausura em dois espaços mas num tempo só. Eu não conseguia abrir o frasco do café com palavras mágicas seguidas de “um, dois… três!”. Eu não conseguia fechar as torneiras com o olhar. Eu não acertava sequer nas estrelas do Euromilhões. Nunca, nem numa!
Mas hoje tudo mudou. De manhã, fui á casa-de-banho e disse para comigo “Bran, tu tens de conseguir”. E estava aflito, mas nem assim cedi á tentação – tão comum dos mortais - de recorrer ao gesto físico. Concentrei-me, fixei os meus pensamentos na tampa da sanita. E sei que vou conseguir levantá-la. Eu tenho fé em mim. Eu sei que tenho talento e que hoje é que é o dia. Eu sinto, eu pressinto que estou quase a conseguir movê-la. Vou buscar a máquina para filmar isto e pôr no youtube.

sexta-feira, julho 23, 2010

Ela a subir a rua

Quando a noite ia adiantada, ela subia a rua e a rua era o desconhecido - como se tomasse uma nave espacial para sete rios e sete rios fosse noutro sistema solar. Ela andava a pé.
Era uma madrugada de quinta para sexta. Na sua cabeça, um objectivo: o cimo da rua. Não estamos a falar de duzentos metros, sequer. Isto são passos, uns pés, umas jardas. Qualquer coisa que dê para medir em termos humanos - não em milímetros; não em quilómetros, não em polegadas -, sem ser em muito nem em muito pouco. Meçamo-lo em hectómetros, vá: era um e picos.
Ela subia devagarinho, a rua era íngreme. Tinha muitas esquinas e esquinas imensas, que iam daqui até lá ao fundo, muito fundo. Tinha portas abertas, portas fechadas, montras gradeadas, montras iluminadas, néons e tijolos a emparedar os devolutos.
Ela subia sem grande classe. A saia era apertada. Não era demasiado curta, mas faltava-lhe elegância. Nunca seria primeira dama de França nem o esplendor da Casa Grimaldi. Mas tinha outro charme.
Subia com vagar ou até mesmo paciência. Ela não era muito nova. Tinha alguma juventude no corpo, sobrara-lhe dos vintes passados sem euforias. Gastava agora as rugas poupadas. Às vezes com conta-gotas; às vezes com contas esgotadas.
Ela não tinha pressa de chegar ao fim. Não tinha pressa nem tinha nome. Umas vezes foi Joana, outras foi Patrícia e de outras foi não sei quem. No fim, sobra pouco e o nome significa o quê?
A rua era só uma montanha. Demorava-se em passos medidos, uns melhores, outros assim-assim. Medir com olhos tortos nem sempre dá métrica certa certa. Ela gostava de obstáculos, de transeuntes e de surpresas.
O salto, alto e fino, afundava-se, a espaços, nas distracções da calçada. Perpendiculares e oblíquas, cruzamentos e entroncamentos: é tudo fenda, tudo é buraco. Rara, essa era a superfície da pedra negra.
Ela subia a conta-gotas, com saltos espetados em brechas. Às vezes arrancava o mundo com uma passada.

quinta-feira, julho 22, 2010

Apontamento sobre a vida de pessoas mais velhas

Às vezes são três, outras vezes são quatro. Depende das enfermidades do elemento mais frágil. São velhinhas, acima dos oitenta anos – pelo menos, assim aparentam. Cada qual com suas muletas ou de bengala; cada uma com sua conjugação de doenças crónicas, varizes e receitas por aviar. Levam o seu tempo até chegar à rua e, quando chegam, encontram-se e entopem o caminho - as ruas são estreitas. A conversa, pausada, envelhecida, mais-que-sabida: “está melhor, m’na Luisinha?” e a pergunta não tem resposta. O ritual não passa de um inquérito de consolação para iludir os tempos, o que passou e o que resta. A menina Luisinha sabe que nem ela nem as amigas dela vão melhorar.

quarta-feira, julho 14, 2010

Preocupações de Verão

Íamos para Sul, era tradição irmos para Sul. A tenda, os sacos-cama e as mochilas no banco de trás. Ela conduzia, eu nunca conduzo - ela grita comigo. O sol da tarde, algum vento saboroso a lembrar que é Verão, a estrada nacional qualquer coisa por ali fora, até lá ao fundo, ao pé de Marrocos e nós a meio do caminho, rolando com calma como se tivéssemos férias a vida toda. Estar de férias também é isso, fingir que o resto não existe e que se pode desperdiçar o tempo e a existência. Quem se preocupa com a realidade durante as férias apanha depressões e úlceras no estômago.
Eu ia a folhear o jornal, mas não era por preocupação. E muito menos por querer saber da realidade. Folheava o jornal enquanto falávamos pouco e ouvíamos música baixinho, era o B Fachada. A paisagem era feita daquele tédio bom, porque se repetia, se deixava tornar previsível. É bom caminhar por trilhos novos, sobretudo quando se sabe o que a estrada lá à frente reserva. Mais vaca menos ovelha, os campos eram todos iguais. As curvas todas familiares umas das outras. Os cruzamentos raros não surpreendiam, havia no espaço entre eles uma cadência. As férias são boas para darmos atenção ao que nunca importa.
Ela olhou de lado um qualquer título do jornal. Falava em pobreza e ela pensou sobre o assunto. Raramente pensamos assim nisso da pobreza a não ser quando o dinheiro nos falta. A pobreza dos outros é a nossa riqueza, o nosso luxo, o nosso conforto, aquele comprimido anti-angústia. Calculamos que ser pobre deve ser mau. E isso faz-nos sentir bem porque há outros que o são ainda mais que nós. Mas as férias fazem-nos reparar nas coisas quotidianas, nas notícias sobre atentados que matam dezenas de pessoas, nos números da sida em Áfirca ou no tal aumento da pobreza. A banalidade, à luz da falta de compromisso, pode ser um assunto muito sério. E ela questionou-se.
-Há coisas que não entendo...
-Então?...
Continuei a folhear o jornal, ela continuou a conduzir, quase distraída. Provavelmente a pensar nos pobres. Mas parecia-me intrigada e, como as curvas da estrada não abundavam, concretizou a ideia.
-Epá... mas o dinheiro não é fabricado?
-Tanto quanto sei...
-É que eu... que haja fome porque não há comida que chegue, eu compreendo... mas porque não há dinheiro?! Por que raio não fabricam mais e pronto?
Tentei responder. Ainda tentei enveredar pela lógica das convenções. Imaginar um esquema elaborado em que, de facto, fizesse sentido haver escassez de dinheiro para, assim, equilibrar o mundo. Mas o melhor que consegui foi:
-Oh!... e o papel que se gastava?...
Continuámos para Sul. Agora passava o Tiago Guillul na telefonia. Durante mais de 5 quilómetros não nos cruzámos com carro algum.