segunda-feira, maio 17, 2010

Existencialismo barato vs. carros caros

-A última coisa que me liberta é a mesma que me fode. A finitude, a inexorabilidade do tempo. E o infitinito da inexistência post-mortem. Deprime-me essa merda. E devia ser proibido ficar-se morto para sempre. Mas pronto. Já que não dá, ao menos que me deixem divertir-me durante este tempinho. Dar concertos de rock, comer caracóis, ver os jogos do Benfica, dormir com a mulher que eu amo e beber umas cervejinhas com amigos como tu. Não trocava isto por guiar um Porsche Cheyenne. Sobretudo, porque não tenho carta.
-E sobretudo porque é Cayenne e não cheyenne.

sexta-feira, maio 14, 2010

O nosso mundo

Lembras-te? O nosso mundo começou quando, mais ou menos por brincadeira, um de nós meteu a manteiga à janela. Se calhar os mundos começam sempre assim, mais ou menos na brincadeira. No dia seguinte, pôs-se outra vez a manteiga à janela. E às tantas, tornou-se um ritual. O nosso pequeno-almoço começa com a distraída colocação do pacote de manteiga no parapeito voltado ao sul – até parece metáfora, já viste? E o vizinho, aquele velho das águas-furtadas lá nas traseiras, sabe muito bem que tomamos o pequeno-almoço tarde na maioria das vezes. Sabe porque vê lá o pacote e calcula que, minutos depois, tu fazes o café. Isto, enquanto eu vou ao pão. É um ritual que começa num gesto pequeno e que, depois, se desenvolve e propaga em pequenas sintonias de maior ou menor esforço – sobretudo quando sobrou muita loiça do jantar, que tu acabas por lavar, meio decidida, meio contrariada. Que queres que diga? Lavas tão bem a loiça... Lavas tão bem a loiça quanto eu vou bem ao pão, já viste? É que a minha ida ao pão não é simples. Há aquela padaria mesmo ali ao pé, a um pulinho da porta de casa. E há a outra, para o outro lado, ao pé da Sé, que tem uns pães que são uma categoria. E eu? Eu não vou a nenhuma dessas. Vou à do Chafariz de Dentro. Já fiz as contas e tudo: ando mais 170 metros (ida e volta) e perco mais cerca de seis minutos. Vendo bem as coisas, é o tempo de lavares mais uns pratos. É da maneira que podes fazer as coisas com mais calma. A calma é importante para se começar bem um dia. Calma, uma janela virada para o sul, pão fresco, manteiga e cheiro a café. Mas há outras razões para eu ir àquela padaria. Primeiro, descobri que têm pão fresco até à uma e meia da tarde. As outras fecham à uma e, na maior parte dos dias, não têm pão (ou têm sobras, uma de cada nação) fresco a partir das onze e picos. Um aborrecimento para quem gosta de amanhecer com vagar e espreguiçadelas. A do Chafariz não é nada assim. Para já, fica num largo, é arejada, não fica numa rua escura, sombria. Uma pessoa vai ali e respira sem humidades, vê pessoas, vê os turistas, vê as esplanadas, vê os cartazes da Amália e do Camané nas montras do Museu do Fado. Parecendo que não, inspira. Imagino-te logo a cantarolar a Casa da Mariquinhas à procura das palavras certas. Ficas mesmo bonita a cantar o fado. Depois, a primeira vez que entrei nessa padaria senti aquele conforto de lá entrar sem ter pressa nem receio que o pão se acabasse. Não recear nem ter stress faz bem porque não faz toxinas. Ninguém quer toxinas ao pequeno-almoço. E depois volto e, como demora mais aqueles seis minutos que eu disse, o café já está feito e a manteiga amaciou entretanto. Eu sei que são coisas pequenas, mas isto dá felicidade. A sincronia dos nossos rituais fazem-nos funcionar com harmonia. Por exemplo, as sessões de CSI. Aquilo não tem interesse nenhum “olha, um vestígio de sangue... boa, vou recolher o ADN” ou aquelas frases do Horatio “vais ter a vida toda para pensar nisso, pazinho... in jail” isto não tem qualquer magia. Mas é uma maneira bonita de suportar essa coisa terrível, que é o fim de mais um dia – porque é um dia que, terminado, não volta mais. E nós suportamo-lo com a discreta felicidade da companhia um do outro. A ver como evoluídos e tecnológicos cientistas demoram quase 50 minutos a descrobrir coisas que eu, nos meus tempos de jogador de Cluedo, descobriria em pouco mais de um quarto-de-hora. E sem computadores. Eu estou a escrever este texto porque te prometi, já há tempos, um texto sobre nós. Mas que fosse razoavelmente amoroso, que não fosse a falar no Papa outra vez. Ups. Esquece, esquece. Um texto razoavelmente amoroso... e eu, que tenho andado ocupado e distraído, eu, aquela pessoa a quem falta o tempo e, provavelmente, a arte para, no meio do cansaço e da confusão, dar atenção a coisas tão importantes como enumerar rituais simples que a gente faz, os dois juntos, sem dar por isso. Mas agora aqui está. Porque a vida não são só rituais, hoje decidi surpreender-te e dedicar-te, semi-publicamente, um texto que eu até acho bonito. É a minha maneira de te fazer o bem. Ou, pelo menos, de tentar. Porque, e tu nunca te esqueças disto, eu sou o teu homem do lixo. Quando, em pânico, olhas para o caixote, prestes a transbordar, eu sei qual é a minha missão. Quando, completamente aflita, percebes que não há mais sacos para pôr no caixote, eu sou rapaz para ir a Santa Apolónia, ao Pingo Doce, nem que seja para comprar um Snickers e pedir “e era um saco, se faz favor”. Porque eu não estou aqui só para salvar o planeta e ser ecológico. Eu sobretudo estou aqui é para salvar o teu dia. Todos os dias. E até levo as garrafas para baixo.

terça-feira, maio 11, 2010

"De um modo geral, foi um flop"

O Papa chegou ao palco e não estava lá ninguém para o ver. Quase ninguém. Duas primas em segundo grau, da Alemanha, que tinham vindo passar dois dias a Alfama para ouvir o fado e aproveitaram, foram ao Terreiro do Paço só dizer-lhe adeus. Um casal de meia-idade que veio “mais pela festa, em si” mas que, desapontados, depressa debandaram, afirmando que “o Rock in Rio é melhor que isto”. Estavam ainda umas quantas mães zelosas, algumas delas mesmo orgulhosas, que vinham ver as suas crianças a cantar no santo côro. Fora isso, havia oito mil polícias, mais ou menos. Era a claque mais numerosa. Porém, era muito dispersa e pouca dada a bênçãos e singalongues. Também estavam dois rapazes hare krishna que pareciam achar tudo muito divertido. Meia-dúzia de aleijados– alguns, coitados, nem palmas conseguiam bater (pelo menos, antes da parte dos milagres). Uns quantos sem-abrigo, em busca de esmola ou de pão, entretanto levados dali, para não tirar o lugar às pessoas – o certo é que pessoas, mesmo pessoas daquelas que os papas costumam gostar de ter como público, não havia ninguém. Quase ninguém. Nem freiras havia, porque era terça-feira e, as que estavam para vir, demoraram-se na Feira da Ladra a regatear CD’s de música moderna e lenços, para porem na cabeça. Com galos de barcelos e contas minhotas, que o branco já passou de moda e as mulheres precisam de alegria. Quem mais se entediou foram as meninas que distribuíam os preservativos da Abraço: não conseguiram dar nem um. Fizeram balões com eles e, ainda assim, proporcionaram a parte mais bonita da tarde, elogiando a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis com uma largada de contraceptivos esvoaçantes. Foi bonito ver aquela núvem de latex sobre o palco papal, esvoaçando, direitinha ao céu.