quarta-feira, março 05, 2008

A permanente

O médico disse que a lesão era permanente. Não percebeu. Não sabia o que isso queria dizer. Permanente era aquilo que a mulher fazia ao cabelo nos anos '80, disso ele lembrava-se. Por agora, tudo o que sabia era que a perna estava presa, se mexia mal e, sobretudo, que lhe doía ali por baixo do joelho. Coisa estranha acordar assim, num dia ao acaso, e ter uma coisa destas na perna, uma permanente.
Desceu a longa escadaria do hospital como se regressasse do pico do Evereste, com muito cuidado, muito custo e pouco fôlego. Deviam era pôr ali um escorrega para pessoas com permanentes nas pernas. Rai'spartam as doenças, a velhice, os hospitais e os arquitectos. E os engenheiros. Doutores? Doutores o tanas! De que lhes vale um canudo se não sabem o que fazem. Noutros tempos, uma quarta classe valia mais do que um "doutor".
Enfim, chegou à porta, doeram-lhe as costas. Hesitou. Tinha de ir apanhar o 30, para Sapadores. Mas já que estava ali, bem que podia inteirar-se da situação. Parou, apoiado na bengala improvisada que trazia. Devia estar a meditar sobre o assunto. Ir? Não ir? Voltar para trás? Tomou uma decisão e cuspiu para o chão como quem o assume o decidido: voltou para trás para "ver que dor é esta". Chegou-se ao guichet e a senhora, que era jovem e bem-parecida, solteira, ainda por cima, atendeu-o com paciência "olá, senhor António... então, outra vez?" e ele "ah... é das costas. Dói-me as costas". "DoEM-lhe. É plural, senhor António". António não fazia a menor ideia do que é que seria plural naquela situação. Seria ele? Gente nova, pfff... Complicadinhos. Pelo sim, pelo não, acenou que sim "pois...". "Espere só um bocadinho, está bem?". António esperou, então.
Enquanto esperava, doeu-lhe a garganta. Que chatice. Tossiu. Doeu-lhe mais ainda. Levantou-se, a custo, com a lentidão das coisas enferrujadas, dirigiu-se ao novamente ao guichet. "Olhe" disse. "Diga, senhor António... que se passa agora?". "É que dói... doem-me a garganta". A rapariga riu. "Não se ria, é uma dor muito séria". A rapariga segurou o riso, recompôs-se "desculpe, senhor António, não foi por mal... Mas agora vai ter de aguardar mais um pouco, está bem?".
Passou algum tempo, António esperava sentado num banco da sala de espera e já nem se lembrava do que esperava. Estava num estado semi-adormecido, algures entre os pensamentos da vida, as lembranças do passado e a anestesia do sono. Os olhos fechavam-se lentamente e logo se abriam, num exercício repetitivo, cíclico. Lembrou-se do 30 para Sapadores, de ir para casa. Levantou-se, doeu-lhe o joelho. "Ah, isto é a permanente" disse baixinho, pondo-se a si mesmo ao corrente do seu próprio estado clínico. "Doutores..."