Crónica do fim de um dia
O meu plano era simples: sair cedo do escritório, apanhar o metro logo em Picoas para ganhar mais um período de espera e um viagem dedicadas às leituras. No Marquês, trocar de linha, esperar mais um pouco, abrir o livro, apanhar o metro, não fechar o livro. Continuar a ler até Santa Apolónia. Chegar a casa pelas nove da noite, comer uma pizza, ver televisão, fumar um cigarro a olhar para o Tejo. A simplicidade tranquila é algo que às vezes não saboreamos com dedicação suficiente.
Atrasei-me um pouco no trabalho. Mesmo assim, consegui sair antes das nove. Cumpri o programa: 40 metros a pé até à estação, abrir o livro, esperar enquanto leio; entrar no metro prosseguindo a leitura. Não se trata de uma leitura qualquer. Trata-se de Henry Miller e do seu extraordinário "Colosso de Maroussi" - não, não contém cenas sexuais. É um guia de espiritualidade humana disfarçada de relato de viagem, como qualquer relato de viagem que se preze. Mas este é o melhor que li até hoje. Miller andou pela Grécia quando estalou a Segunda Guerra Mundial. E absteve-se de se importar com o assunto porque vagueava pelas ilhas gregas a sorver o que a humanidade fizera e aproveitara de bom com aquilo que as divindades, sejam elas quais forem, se entretiveram a erigir para nós. Não lia jornais. Não tinha dinheiro. Conversava com amigos e deleitava-se com a existência, apenas isso.
O metro chegou ao Marquês e eu não saí do Corinto. Entre um e outro sítio, as histórias de Katsimbalis não me deixavam avançar rapidamente pelas páginas. De repente, uma travagem brusca. O metro parou e eu continuei. O rapaz à minha frente ouvia música muito má nos headphones. Na carruagem todos permaneceram em silêncio e agora as canções da Lady Gaga misturavam-se com a voz imaginária de Katsimbalis na cabeça imaginada de Henry Miller na minha cabeça. É impossível ler nestas condições. Começaram os primeiros suspiros impacientes. Mandei uma mensagem "que fixe, estou preso dentro do metro". Começaram os primeiros telefonemas, todos diziam o mesmo que a minha mensagem ou faziam ligeiras variações "vou chegar um pouco atrasado", "não sei o que se passa", "o metro parou, não anda, isto é inacreditável".
Passaram talvez quinze minutos. Havia burburinho lá ao fundo. Como vinha numa das últimas carruagens, limitava-me a ouvir o ruído longínquo. Era impossível perceber do que se tratava. O condutor falou pelo intercomunicador "senhores passageiros, isto é só um bocadinho... só um bocadinho". Lembrei-me de Chesterton a explicar o número infinito de possibilidades de eventos desde que uma pessoa entra numa carruagem de metro até que sai da estação de destino. Lembro-me perfeitamente dessa passagem em que ele, a dada altura, dizia algo do género "já reparou no milagre que é acontecer precisamente a possibilidade de que está à espera?". Pareceu-me irónico.
Devia ter passado já meia-hora, não consegui ler mais que umas três ou quatro linhas depois da travagem brusca. O metro não voltou a ser ligado. Um funcionário entrou pela nossa carruagem "meus senhores, vamos ter de sair um a um pelo túnel, está bem? Nós vamos ajudar, vamos sair com calma... um de cada vez, façam fila. Devagarinho". Alinhámo-nos, meio incrédulos, um pouco desorientados. Senti o peso da ignorância. Senti que agora era Kafka quem escrevia com os meus pensamentos. Senti-me claustrofóbico. Fiquei um pouco ansioso, um pouco impaciente. A fila avançava lentamente. Os passageiros, tal como eu, algo nervosos, uns telefonavam, outros mandavam mensagens. Eu respirava e tentava não pensar. Algumas pessoas trocavam palavras de ocasião que iam do "inacreditável" ao "já estou atrasado". Eu só queria chegar cedo a casa. Uma mulher, ainda nova, disse "foi alguém que se suicidou. Atirou-se à linha". Aparentemente, a informação incerta, vaga e dita em tom discreto não causou choque. Os telefonemas começaram a conter a informação "houve alguém que decidiu atirar-se para a linha" e pouco mais. Nem uma expressão de horror, tristeza ou compaixão. Apenas a constatação geral de que uma decisão imprudente daquelas, àquela hora, naquele sítio, viera causar a todos grande transtorno.
As pessoas iam saindo muito lentamente. Chegou a minha vez. Tínhamos de descer de costas uma escada alta até ao nível dos carris. Depois, em fila indiana, seguir até ao cais. Este exercício vezes muitas pessoas demorou algum tempo. No cais a polícia fez uma pequena e despreocupada barreira. O INEM já tinha chegado. As pessoas apressaram-se para a saída, de volta às suas vidas. Não consegui perceber se era um homem ou uma mulher, se era velho ou se era novo. Lembrei-me da Construção de Chico Buarque e de como esta pessoa, que deixara de ser pessoas ao atirar-se para debaixo do metro onde eu seguia, acabou por atrapalhar o trânsito.
Saí da estação, tentei levantar dinheiro, apanhar um taxi. Não consegui. Decidi caminhar até casa, cerca de meia-hora de caminho ou um pouco menos, se o passo for acelerado. Pensei que, se calhar, estas coisas acontecem por alguma razão. Devem dar-nos uma lição qualquer.
A pizza não era muito boa. Na verdade, não me soube bem. Na TV dava um filme medíocre e doía-me a cabeça. O final era previsível. Lembro-me de uma deixa da Meg Ryan, pouco antes do inevitável desfecho, que dizia algo do género "eu dantes pensava que as coisas aconteciam por alguma razão; agora sei que simplesmente acontecem, mais nada". Mais nada.
Atrasei-me um pouco no trabalho. Mesmo assim, consegui sair antes das nove. Cumpri o programa: 40 metros a pé até à estação, abrir o livro, esperar enquanto leio; entrar no metro prosseguindo a leitura. Não se trata de uma leitura qualquer. Trata-se de Henry Miller e do seu extraordinário "Colosso de Maroussi" - não, não contém cenas sexuais. É um guia de espiritualidade humana disfarçada de relato de viagem, como qualquer relato de viagem que se preze. Mas este é o melhor que li até hoje. Miller andou pela Grécia quando estalou a Segunda Guerra Mundial. E absteve-se de se importar com o assunto porque vagueava pelas ilhas gregas a sorver o que a humanidade fizera e aproveitara de bom com aquilo que as divindades, sejam elas quais forem, se entretiveram a erigir para nós. Não lia jornais. Não tinha dinheiro. Conversava com amigos e deleitava-se com a existência, apenas isso.
O metro chegou ao Marquês e eu não saí do Corinto. Entre um e outro sítio, as histórias de Katsimbalis não me deixavam avançar rapidamente pelas páginas. De repente, uma travagem brusca. O metro parou e eu continuei. O rapaz à minha frente ouvia música muito má nos headphones. Na carruagem todos permaneceram em silêncio e agora as canções da Lady Gaga misturavam-se com a voz imaginária de Katsimbalis na cabeça imaginada de Henry Miller na minha cabeça. É impossível ler nestas condições. Começaram os primeiros suspiros impacientes. Mandei uma mensagem "que fixe, estou preso dentro do metro". Começaram os primeiros telefonemas, todos diziam o mesmo que a minha mensagem ou faziam ligeiras variações "vou chegar um pouco atrasado", "não sei o que se passa", "o metro parou, não anda, isto é inacreditável".
Passaram talvez quinze minutos. Havia burburinho lá ao fundo. Como vinha numa das últimas carruagens, limitava-me a ouvir o ruído longínquo. Era impossível perceber do que se tratava. O condutor falou pelo intercomunicador "senhores passageiros, isto é só um bocadinho... só um bocadinho". Lembrei-me de Chesterton a explicar o número infinito de possibilidades de eventos desde que uma pessoa entra numa carruagem de metro até que sai da estação de destino. Lembro-me perfeitamente dessa passagem em que ele, a dada altura, dizia algo do género "já reparou no milagre que é acontecer precisamente a possibilidade de que está à espera?". Pareceu-me irónico.
Devia ter passado já meia-hora, não consegui ler mais que umas três ou quatro linhas depois da travagem brusca. O metro não voltou a ser ligado. Um funcionário entrou pela nossa carruagem "meus senhores, vamos ter de sair um a um pelo túnel, está bem? Nós vamos ajudar, vamos sair com calma... um de cada vez, façam fila. Devagarinho". Alinhámo-nos, meio incrédulos, um pouco desorientados. Senti o peso da ignorância. Senti que agora era Kafka quem escrevia com os meus pensamentos. Senti-me claustrofóbico. Fiquei um pouco ansioso, um pouco impaciente. A fila avançava lentamente. Os passageiros, tal como eu, algo nervosos, uns telefonavam, outros mandavam mensagens. Eu respirava e tentava não pensar. Algumas pessoas trocavam palavras de ocasião que iam do "inacreditável" ao "já estou atrasado". Eu só queria chegar cedo a casa. Uma mulher, ainda nova, disse "foi alguém que se suicidou. Atirou-se à linha". Aparentemente, a informação incerta, vaga e dita em tom discreto não causou choque. Os telefonemas começaram a conter a informação "houve alguém que decidiu atirar-se para a linha" e pouco mais. Nem uma expressão de horror, tristeza ou compaixão. Apenas a constatação geral de que uma decisão imprudente daquelas, àquela hora, naquele sítio, viera causar a todos grande transtorno.
As pessoas iam saindo muito lentamente. Chegou a minha vez. Tínhamos de descer de costas uma escada alta até ao nível dos carris. Depois, em fila indiana, seguir até ao cais. Este exercício vezes muitas pessoas demorou algum tempo. No cais a polícia fez uma pequena e despreocupada barreira. O INEM já tinha chegado. As pessoas apressaram-se para a saída, de volta às suas vidas. Não consegui perceber se era um homem ou uma mulher, se era velho ou se era novo. Lembrei-me da Construção de Chico Buarque e de como esta pessoa, que deixara de ser pessoas ao atirar-se para debaixo do metro onde eu seguia, acabou por atrapalhar o trânsito.
Saí da estação, tentei levantar dinheiro, apanhar um taxi. Não consegui. Decidi caminhar até casa, cerca de meia-hora de caminho ou um pouco menos, se o passo for acelerado. Pensei que, se calhar, estas coisas acontecem por alguma razão. Devem dar-nos uma lição qualquer.
A pizza não era muito boa. Na verdade, não me soube bem. Na TV dava um filme medíocre e doía-me a cabeça. O final era previsível. Lembro-me de uma deixa da Meg Ryan, pouco antes do inevitável desfecho, que dizia algo do género "eu dantes pensava que as coisas aconteciam por alguma razão; agora sei que simplesmente acontecem, mais nada". Mais nada.