Chegamos a certa altura da noite, depois de horas a fio a falar de música, após vários copos de vinho tinto, umas quantas minis e saladinhas de polvo e tostas de atum, a conversa resvala invariavelmente para um tema: a minha relação com a música do Neil Young. A mesa grande da Bela leva cerca de muitas pessoas, dependendo da hora a que chegamos e de quem está comigo. Mas é para cima de seis ou de oito e às vezes mais. E toda a gente gosta sempre do Neil Young e toda a gente o respeita imenso. E eu, na minha inocência, uma vez tive a ideia infeliz e descuidada de dizer que “não tenho pachorra para esse gajo” e originei uma espécie de motim. A minha cruz é, desde então, ser o alvo de toda a mesa sempre que as pessoas deixam de ter memória das conversas que já tivemos e a raiva lhes vem de novo ao de cima.
Portanto, e uma vez mais, lá estava eu, no centro de todos os ódios.
-Mas que porra, qual é o mal de eu não gostar do que o homem faz? É assim tão importante? Ele nem sabe que eu existo! Ele tem milhões de outros fãs…
-Mas tu sabes distinguir o Neil Young do Neil Diamond? Ah ah ah… - e riam todos; eles não se lembravam, dada a hora da noite, mas essa piada já tinha sido feita de todas as vezes anteriores.
-Vai-te foder…
-O Diego não sabe … Nem sabe que o gajo era guitarrista de Buffalo Springfield…
-Aqui vamos nós… .l. Vocês são do caralho, pá. Acho o gajo chato, meu. Deslarguem-me da braguilha!
-Pá e no Harvest, pá? E no Harvest? Só conheces o gajo desde os Pearl Jam… Vai ouvir o Harvest, totó…
-Read my lips: .l.
-‘Tão e sabes de onde é que vem a Sweet Home Alabama, dos Lynyrd Skynyrd? Ah, pois é… não sabes, boy, não sabes…
-Já me contaste isso pelo menos dez vezes…
A conversa continuava. Eles bombardeavam-me, provocavam-me; eu bebia minis, comia batatas fritas Saloinha e distribuía piretes de modo mais ou menos aleatório. Já não lhes levo a mal. Até sorrio e acho graça. São como crianças musicais e eu sou o seu brinquedo preferido.
O Francisco entrou com o seu longo sobretudo e um sorriso ainda mais longo. Notava-se que estava feliz e em pulgas por qualquer motivo. Por trás dele, um homem de camisa aos quadrados, calças de ganga e chapéu de cowboy. Patilhas longas. Cabelos grisalhos, quase pelos ombros. De rosto, uma mistura entre David Carradine e Billy Bob Thorton. Mas em feio.
O Francisco aproximou-se da mesa e fez sinal ao tipo.
-Neil, come here please. There’s someone I’d like you to meet.
O homem chegou-se. Fez-se silêncio. Pousei a minha cerveja e levantei ligeiramente o sobrolho.
-Só podes ‘tar a gozar…
-Neil, this is the people… and that one over there is Diego, the guy I told you about.
-Hy people! – e, olhando para mim, rindo e estendendo-me a mão, enquanto com a esquerda tirava o chapéu, como um cavalheiro perante uma senhora – And… hello Diego. It’s very nice to meet you.
-Tu só podes ‘tar a gozar comigo, caralho! – isto, dizia eu ao Francisco, enquanto cumprimentava o velhote.
Sentaram-se. Passámos a ser uns onze ou catorze à mesa. O Francisco chamou a Bela para pedir bebida.
-What’chyou gonna have, Neil?
-Ehrm… do you got some salsaparila?
A Bela também levantou o sobrolho, interrogativa.
-Pergunta se tem salsaparrilha – traduziu o Francisco.
-Eu percebi! Só estou incrédula… ‘Tá a gozar?! We got wines, mister! Wine. And beer. Choose.
-Oh… then arhhhm… I guess I’ll have a beer.
-Sagres?
-No… - olhou para mim e sorriu, com gozo – I’m from up North, you know. I’ll have a… Super Bock.
Não me conformava. Não me conformava!
-Mas que puta de ideia, Francisco… Mas que puta de i-d-e-i-a! Bela, traga-me mais uma, fáxavor. Daquelas minis das gordinhas, se ainda houver. Sagres, claro!
-Eu sei, menino Diego, eu sei…
E então ele virou-se para mim. Ia claramente dizer qualquer coisa. Mas, antes de falar, fez questão de me olhar bem nos olhos. Como se me estudasse. Como se me quisesse intimidar.
-So… I heard you’re a musician too…
-Ya.
Riu-se. Eu continuei a comer o milho tostado e os amendoins salgados. Toda a gente estava calada. Toda a gente queria ouvir. Ele sorriu antes de recomeçar. Levou um amendoim à boca e continuou
-So… and I heard you don’t like me…
Olhei para o Francisco com alguma raiva. Olhei para os restantes. Todos sorriam como quem diz “bem feito!”.
-How could I “not like you”?... I don’t even know you. Met three seconds ago.
Ele sorriu de novo.
-You don’t like my songs.
-Well… you might say that. Though probably it’s a bit exaggerated… I just find them… you know… boring.
-Oh… that’s a lot fuckin’ better… Thank you! Thank you, Diego…
-I didn’t mean to offend you, ok? – interrompeu-me, brusco.
-You ain’t much of a songwriter yourself, if I may say… Neither a singer. And you’re for sure a fuckin’ lousy guitar player – maybe you should practice in Guitar Hero.
Disse isto e olhou para o Francisco e para todos os outros e toda a gente riu bastante. E eu olhei para ele e para todos os outros e não sabia o que havia de dizer.
-Me it’s more about… it’s the lyrics, man. You should learn Portuguese. My thing is the lyrics. Better than yours, that’s for sure… You should write in Chinese, at least people wouldn’t understand it…
Acho que neste ponto, quando acabei de dizer isto, houve quem parasse de respirar.
-Aqui tem a Sagres, menino Diego. And your Super Bock.
-Obrigado, Bela. Pessoal, está a ser um bocadinho muito bom. Mas vou até à Típica. A ver se o Paulo mete uns clássicos do rock. É o que me apetece ouvir.
Já me levantava e vestia o casaco. Felizmente, as minis não têm retorno. Dão para levar para a rua. E diz ele para o Francisco
-Where’s he going? What did he say?
-He’s going up there to another bar… he wants to listen to some rock n’ roll classics.
-Well, you little motherfucker… I’M a funckin’ rock n’ roll classic! ME! I’m here!
E virou-se para o Márcio. Aparentemente, o Márcio também estava combinado. Tinha levado a guitarra. Passou-lha e ele já se preparava para tocar.
-Também tu, Márcio?
Confesso que me senti magoado. Todos contra mim; ninguém para me apoiar. Decidi sair na mesma. Eu estava visivelmente agastado, claro. Até porque toda a gente sorria. De alguma forma, todos se sentiam vitoriosos. Vingados.
-I’m sorry, I’m not gonna listen to you…
-Please, stay. I’d like you to stay.
-I’m sorry, Mr. Young. I think we won’t manage to be friends, ever…
-Oh, no Diego… I AAMMM sorry… I don’t want to be friends with you. And for sure I didn’t mean to upset you!
E riu-se. E todos se riram. Riram com vontade. Senti-me gozado. Saí. Saí com pressa, como se fugisse. Nem paguei, pago depois. Pago logo, pago amanhã. Pago quando o Neil Young não estiver ali a assombrar-me. Acelerei o passo e subi a rua. Queria chegar à Típica o mais rapidamente possível. Quando estava a chegar, alguém gritou
-Hey, Die-go! Hy… wait!
Oh não. Era ele. E vinha em direcção a mim, num trote ligeiro, como quem tem alguma pressa. Parei e esperei por ele. Chegou e pôs-me a mão no ombro.
-Look… we could be friends.
-…
-Seriously. I was just pretending back there. Eu até falo português, dude. Eles é que não sabem. Coitados… não lhes quis destruir a fantasia.
Fiquei confuso. Ele continuou.
-Look, eu forcei a tua saída… to tell you the truth, estou tão farto das minhas músicas como tu. Já não me posso ouvir, man! Really! Queria tudo menos ter de tocar outra vez that fuckin’ shit do rockin in a free world e outras que tais, dude. Eu só queria vir contigo. May I?
-Well… sure. I guess.
E fomos. Bebemos cervejas. Ele manteve-se fiel à Super Bock. E eu à Sagres. E conversámos. Conversámos muito. Ele é boa pessoa. Atento, bem-disposto, mordaz. Tem sentido de humor. À porta, enquanto fumávamos, disse
-Still, I was telling the truth about you’re songs… you suck, dude.
-It’s songs for the ladies, baby. You’re not a lady. Bitch…
E rimos muito e brindámos.